O Olhar de Alícia
Aquela tarde parecia não querer mais ir embora. Alícia sentava-se à frente da janela para ter visão melhor daquele pedaço de mundo que se espraiava sob a timidez de um céu à beira de anoitecer. Nada de novo queria acontecer. As pinceladas na telas reproduziam uma paisagem surrealista de cujas cores a pintora gostava. A imperfeição das formas acrescentava muita riqueza de sugestões à obra. A artista acabara de pintar os olhos de um rosto sem contorno ainda.
Daqui a meia hora, as crianças chegariam do colégio. Quando a noite caísse, viria o marido. Estaria particularmente alegre, esta noite. O banho seria mais demorado, usaria o perfume que recebera de presente no dia dos namorados, Alícia gostava. Entretanto, os excessos de asseio eram para a visitante, Detinha: dos sobrinhos, a mais velha, filha do irmão mais velho.
A lua começava a desaguar cascatas de leite e mel sobre as montanhas. Alícia, encostada ao caixilho da janela, sentia-se envolvida pela transfiguração da natureza e, de repente, um largo suspiro parecia desoprimir-lhe o peito de uma velha angústia.
A torre da igreja, no alto do verde adro, agora já se apresentava pomposamente prateada pelo luar. Era um convite à fuga. Seria pertinente, hoje, deixar-se levar por pensamentos atuais e não pelo sentido sufocante do passado. Fora uma menina loura, outrora, de sonhos louros também, até que caíra num poço. Um poço estreito, negro, de águas terrivelmente imóveis. Alguém escutara seu grito. Alguém que a salvara. Mas a angústia do fundo do poço sempre voltava; então os cabelos começaram a escurecer. Os sonhos também. Os cabelos ficaram escuros e Alícia lutava para resgatar os devaneios. Assim é que as noites de luar, como a de hoje, tinham o sortilégio de ressuscitar a menina loura.
" Detinha nunca teve cabelos louros!" pensou, enquanto se afastava da janela, sem dizer adeus ao luar.
O sotaque bonito e a pele bronzeada da visitante denunciavam que ela trazia a exuberância das praias nordestinas. Exalava um cheiro natural de liberdade ou, talvez, de uma sensualidade meio desconcertante.
O último encontro pegara Alícia despreparada:
- Olá, tia! Como você está bem!
Alícia, entretanto, sentia a formalidade daquelas palavras. Sabia que vestia, então, um personagem de olhar cansado e sem brilho, com um sorriso escondido atrás da rotina. Ainda bem que fizera as unhas. Senão, seria o fim! Pôde, é verdade, perceber que, em público, seu marido queria ser visto ao lado da sobrinha. Bom fingir que era companheiro da mulher mais jovem. "Vaidades de homem" , pensou a esposa.
Detinha trouxera de Fortaleza, para aquele jantar, o sorriso mais branco e cativante que Emanuel e Alícia já tinham visto. Vinda de metrópole, lançava um olhar indulgente à pequenez da cidade que a acolhia.
As crianças recolheram-se calmamente mais cedo naquela noite, cansadas que estavam das brincadeiras e da lida do colégio.
Era um belo trio à mesa: um cavalheiro moreno, escanhoado, perfumado, trajando esporte fino. Uma mecha de cabelo caía pela testa, enfeitando-lhe sobremaneira o olhar. As duas damas eram um contraste em certos aspectos: a esposa, de olhos castanhos claros, sufocara parte de seus atrativos na azáfama do dia sem, no entanto, por isso, deixar de ser uma mulher interessante. Sorriam, todos. Polidamente. A música ambiente era suave o suficiente para, junto com o vinho, proporcionar uma atmosfera onírica. Estranho, entretanto, era que se falassem sem se olhar. As frases eram cuidadosamente curtas e bem-humoradas.
- É ótimo podermos lembrar das férias passadas na casa de seus pais, disse Emanuel. A própria expectativa já tinha um sabor de festa.
- Mamãe e papai adoravam receber os irmãos e os sobrinhos para o Natal e para as férias de verão. Eram tantas as novidades! Tantos segredos trocados às pressas!
- E alguns amores levados pelo mar... Ah! Bons tempos de muita reza e de muita risada. A lei era a da penitência, mas havia muitas flores nos cabelos, a criar um fascínio inebriante.
Havia algo tão amargo na voz de Emanuel, que desfazia a fleugma ensaiada para aquele momento.
Alícia achou um exagero os olhos lacrimosos do marido.
Detinha silenciou, mergulhada em sua evidente vaidade. Há plenitude de mistério no silêncio, quando existe presença humana.
Piegas. Era tudo quanto Emanuel tornara-se em seu saudosismo. Atravessava a sala com um olhar, ainda com o último gesto interminado na mão. Havia penumbra, flores e música suave, o que acrescentava nuances sensuais ao ambiente.
A esposa falou sobre os filhos, tentando mudar o tema da conversa, para resgatar a imagem do marido, a sua própria e, com enorme esforço, preservar sua família. Não obteve eco. Saiu da sala sob alegação de pegar a sobremesa. Ninguém notou. Sentiu um escurecimento na vista ao compreender-se abandonada. E o medo do poço, que em algumas ocasiões, é maior do que o medo da morte.
O fogo frio do luar incendiava a sala e agora parecia ter-se completado o cerco à harmonia de Alícia que ouvia Detinha dizer, suavemente:
- Minha filha chama-se Lívia. Ela sempre pergunta pelo pai. Por enquanto, respomdo apenas que viajou, o que não é mentira.
O irmão gêmeo de Emanuel estava em Frankfurt, ela o sabia. Fora para lá assim que soubera da gravidez da sobrinha. Nunca mais retornou.
- Só maistarde, direi que jamais voltará, continuou Detinha. E que foi um grande amor, embora não o único que...
Alícia achou mais prudente interromper a última frase.
Era preciso salvar a família.
-Mousse de Capuccino! Gostam? Falava em tom de quem pede perdão, socorro, ajudem-me, por favor!
A pergunta ficou sem resposta.
Detinha parece que se refez da emoção antecipadamente e observou:
- Emanuel, sua esposa é perfeita! Você só é feliz porque a tem.
Detinha olhou para Alícia como quem a desnudasse.
O varão se escondeu silente entre o enigma e a sentença.
O simples fato de existir doía tanto quanto o medo de morrer sob o jovem olhar de Detinha.
Depois de algum tempo, Emanuel notou que a esposa se ausentara da sala outra vez. Sabia-a frágil demais para suportar o peso histórico daquela situação. Chamou-a:
- Querida, queremos parabenizá-la pela sobremesa deliciosa!
Alícia sentia que a força da lua obrigava-a a projetar-se em confissões.
- Uma vez, disse com voz tensa para a pequena plateia, caí dentro de um poço. Salvaram-me. Agora, com trinta e quatro anos, eis-me, outra vez, dentro do poço. Os homens gostam de nos aviltar. Sentiu-se riscada por um calafrio. Disputam-nos. Por quê? Mulheres não têm donos. Acreditam, sim, nos sentimentos , esperam ser conquistadas e não possuídas.
Detinha não sorria mais. Sua sensualidade não exalava mais o odor do cio. Antes que se envolvesse em angústia, apressou sua despedida com um argumento contundente.
A dona da casa voltou solitária à janela, atraída, mais uma vez, pela lua. Lembrou-se da velha lenda: o lugar onde Dom Sebastião desencantasse, ficaria todo tingido de prata. Dom Sebastião, na pureza dos cabelos louros, sem nunca ter conhecido mulher...
O marido chamou a esposa mais de uma vez, sem obter resposta.
Foi ao atelier. Lá, sentiu sua presença, mas não a viu. Acendeu as lâmpadas. Notou a obra inacabada e um par de olhos com vida nela incrustados. Refletiam o brilho de quem venceu o medo. Eram olhos de sentinela, olhos castanhos, os olhos de Alícia.
Sacudido por um arrepio, Emanuel começou a sair dali tropeçando, percebendo que, de repente, aquele cômodo vazio, alucinado pelo luar, enchia-se da presença da esposa e de seus gestos crédulos.
por entre cores e formas, Alícia cuidaria feliz para que sua família não sofresse abalos fugazes. Pai, mãe e filhos protegidos em seguro catre de luz atravessando a vida. Existência posivelmente mesoclítica: família - mulher - paixão.