Um Crime Absurdo
Uma família típica da classe média assiste à televisão. São seis horas da tarde quando um sujeito invade a casa. Para espanto dele ninguém reage e continuam assistindo. O invasor vai até a cozinha e nisso é interrompido pela matriarca.
— Fiz uns bolinhos, experimenta aí pra ver se ficou bom.
— Falou comigo? – estranhou o sujeito.
— Não, falei com o fantasma que passou primeiro que você.
— Fantasma? Onde?
— Claro que foi com você.
— Não fale assim, eu posso te matar!! – impôs-se o criminoso.
— Se quiser fazer barulho, faça lá fora, to assistindo ao telejornal. – disse o marido.
— Que diabo de família vocês são? Eu sou um ladrão, estou invadindo a casa de vocês e sequer estão amedrontados.
— Pra começar você chegou muito cedo, se quiser roubar que venha da meia-noite as cinco, se quiser nos roubar agora que espere pelo menos o telejornal. – disse o homem.
— Quer saber, eu vou levar a televisão agora mesmo.
— Calma, pra que se apressar? A casa é grande por que não dá uma volta, escolha alguma coisa, o que acha de ficar pro jantar? – convidou a mãe.
— Tá bom eu aceito.
— Ótimo, agora se sente ai no sofá que eu vou preparar. Gosta de estrogonofe?
— Adoro.
— Que bom, vou fazer.
— Mas não se esqueça dos champignons. – requisitou o meliante.
O bandido sentou-se ao lado do filho mais novo.
— Pai, eu quero esse carrinho de controle remoto – pediu o filho se referindo ao comercial da televisão.
— Não vou poder agora filhão, espera mais um pouco.
— Eu quero agora!!! – disse o filho já chorando.
— Quer que eu dê pra você? – ofereceu o bandido.
— Você tem dinheiro? – perguntou o filho.
— Não, mas eu posso roubar.
— Então me dá!!
— Filho! Não é assim que se consegue as coisas! E você não se intrometa!!
— Desculpe, eu só quis ajudar!
— Pai, por que você não rouba também? – perguntou o filho.
— Roubar é crime! Eu posso ser preso.
— Tio, você já foi preso?
— Não!
— Viu, pai! Rouba lá pra mim!
— Você viu em que fria me colocou? – esbravejou o pai pro bandido.
— Não era minha intenção!
Rapazes, o jantar está pronto.
Todos sentados à mesa e a mãe começa servir a todos.
— Mãe, o tio ta roubando minha batatinha frita!
— Moço, tente se segurar pelo menos aqui.
— Perdão, senhora, é força do hábito.
De repente um celular começa a tocar. O bandido atende num aparelho mais moderno que o do dono da casa.
— Fala meu, o que manda?... Eu to aqui jantando... To falando sério, me chamaram pro jantar... Calma, eu vou levar, é só terminar aqui que eu to levando. Você não acredita né? Vou passar aqui pro coroa que você vai ver.
— Alô, quem fala? Aqui é o Roberto, a gente chamou seu comparsa pra ficar e comer um pouco, mas olha, vocês estão muito adiantados, tem que melhorar essa logística de vocês, o cara chegou no meio do meu telejornal, assim não dá.
— Ele já desligou?
— Sim, tava meio nervoso.
— O patrão é assim mesmo, é que eu ando atrasando muito, ai hoje resolvi chegar mais cedo pro serviço e ele me deu essa Ordem de Roubo.
— Ordem de Roubo? – estranhou Roberto.
— Exatamente, é o pessoal da nova gestão, inventaram, pra deixar o crime mais organizado. Nesse dia vamos roubar televisão pra pagar um pouco as drogas e abastecer algumas celas do presídio.
— E o que tem nessa ordem? – perguntou a esposa.
— Pra começar tem o número da ordem, tem a minha identificação, o endereço, perfil da casa e outras informações pertinentes.
— Interessante, é quase uma profissão. – comentou a mulher.
— Diria que sim, tem que cumprir horário, tem que prestar conta pro patrão, tem férias também.
— Tem plano de carreira? – perguntou o marido.
— Sim, começa com trombadinha, assaltante júnior, pleno e sênior que roubam no meio da rua, depois vêm ladrão de classe média e classe alta que só roubam casas, esses passam por treinamento intensivo e podem ser reprovados.
— Que coisa hein! – disse a mulher surpreendida. – Vai querer um café? Ou quem sabe um vinho?
— Pode ser um vinho, mas importado, por favor.
Nesse momento chega o filho mais velho.
— Boa noite pra todos. Temos visita.
— Não é uma visita bem-vinda, mas está se comportando bem. – disse o pai.
— De quem se trata?
— Eu sou o MRX Morcego.
— Prazer, Ricardo.
— Isso não é nome, com certeza.
— É a minha identificação dentro da corporação.
— Quem é esse sujeito?
— Ele é um ladrão de classe média. – disse a mãe.
— Um ladrão em casa! Por que não chamaram a polícia? Houve algum ferido, ligaram pra ambulância?
— Calma, filho, você não se acostumou com o crime? Todo dia alguém é roubado, sequestrado, assassinado. É a vida.
— Como você pode agir com essa naturalidade? É errado, roubar é crime, matar é crime, tudo é crime.
— Pow cara, assim você me ofende.
— Pai, mãe, chamem a polícia!
— Meu filho, dizem por aí que não dá pra confiar nem mais na polícia, mesmo tendo ótimos profissionais, mas sempre tem uns que se usam do poder que tem. Assim como há bandidos que não querem matar, querem apenas dinheiro pra comer e beber algo.
— Pai, você ta fazendo apologia ao crime?
— Jamais! Mas há gente boa e ruim tanto no poder quanto no crime.
— Gente boa no crime? Desde quando???
— Sim, aqueles que não querem matar, da mesma forma há pessoas comuns como nós que também comete seus crimes: por exemplo, as pessoas sabem que precisa comprar medicamento controlado com receita, mas conseguem comprar mesmo assim, isso é errado e ainda contam com estabelecimentos que permitem isso.
— Da onde você tirou isso de medicamento controlado?
— É um amigo farmacêutico que me conta.
No meio do diálogo, aparece um sujeito com arma na mão gritando.
— Isso é um assalto!!
Todos erguem as mãos subitamente para cima.
O bandido porém para estático e diz
— Cara, o que você faz aqui? – perguntou o bandido.
— To tomando um vinho com o pessoal.
— Bonito hein, bebendo em hora de serviço. O patrão me mandou pra cá, vamos resolver logo isso.
— Espera, o diálogo não acabou ainda, o filho ta discutindo com o pai. Podem continuar.
— Mas antes vocês vão cair fora daqui. – disse o filho.
— Não saímos sem que roubemos algo.
— Se é assim, esperem um pouco.
Minutos depois o rapaz voltou com uma sacola.
— O que tem ai?
— Um par de tênis velho, meias furadas, figurinhas antigas e um sanduíche mofado.
— Mais respeito, somos ladrões de classe média, e logo seremos ladrões de rico
— E eu com isso?
— O senhorzinho é muito folgado, eu posso te meter uma bala no coração, só não faço porque seus pais me trataram bem e eu não preciso disso aí, vou sair pela porta da frente, como um ladrão digno.
— Espera ai, vai sair de mãos vazias? Nada disso! – disse o dono da casa.
— Pai, você ficou louco!?
— Não filho, afinal o que é essa televisão? Apenas um objeto, não tem vida.
— Mas o senhor trabalhou honestamente para comprá-la, não é justo que alguém venha e a roube.
— Senhor ladrão, você concorda com meu filho? Eu trabalhei honestamente para comprar essa televisão e alguém de forma desonesta a obtém.
— Ele tem razão, não é justo.
— Assim como não é justo pagarmos tantos impostos e não vermos esse dinheiro ser aplicado na prática, o que acontece com esse dinheiro? É um mistério, enquanto não sabemos chamamos os políticos de ladrão, serão que eles são mesmo, será que eles também são reféns de um sistema estagnado que não permite uma melhor distribuição da verba. Há tantas teorias, tantas ciências, mas pouca solução, enquanto isso vai continuar havendo o burguês, o criminoso, o pobre, o político honesto e o desonesto, o policial que defende o cidadão e aquele que abusa do poder.
Após o longo discurso o homem se encontrou só: a esposa estava na sala vendo televisão, os bandidos foram embora levando a televisão do quarto de hóspedes, afinal a Ordem de Roubo tinha sido escrito sem discriminar o objeto de roubo e o filho estava tomando banho.
No dia seguinte o homem foi até uma livraria comprar um livro sobre o poder e o crime, na hora de pagar achou o preço um abuso e pediu desconto, o caixa num ato absurdo e louco, começou a arrancar páginas do livro.
— O que você está fazendo?
— O senhor não quer um desconto? Então estou descontando do livro também, afinal o autor escreveu o que tinha que escrever, foi dado um valor para esse livro e o senhor quer diminuir o trabalho do autor, só tirando página mesmo.
— É muito subjetivo dar valor para algo.
— Também acho. Tanta gente que gasta fortuna numa camiseta de algodão por causa de uma mínima estampa, sendo que o mesmo material sem estampa pode custar dezenas de vezes mais barato, vai entender, é o valor da marca.
— Não vou discutir. Ontem já tive um diálogo extenuante com um bandido, meu filho e minha esposa, deixa esse assunto de valor pra próxima.
— Eu hein! Cara doido. Depois que falam que o doido sou eu por ficar arrancando página de livro pra dar desconto. É um absurdo.
Miguel Rodrigues, 12 de Janeiro de 2009.