Branca

I

Em meio a conversas cruzadas, gritos de criança, tilintar de copos levemente tocados em brinde e outros ruídos naturalmente presentes em festas como a que naquele momento estava se desenrolando na residência de Marieta e “seu” Antônio, a dona da casa, num movimento característico do dedo indicador, fez um breve e silencioso sinal para que a filha a encontrasse daí a pouco em seu quarto. Em seguida, desapareceu no pequeno corredor.

Já no dormitório, ao se aproximar da mãe, Ilma percebeu que ela estava muito agitada. Marieta a aguardava ansiosa, sentada numa velha poltrona e remexendo nervosamente as pernas para frente e para trás. Antes de se acomodar ao lado da mãe, Ilma fechou a porta do quarto atrás de si e pôs-se a aguardar em silêncio.

Com os olhos úmidos e no tom de voz mais baixo que encontrou – quase inaudível mesmo para quem estivesse com os ouvidos colados em seus lábios –, Marieta enumerou para a filha as razões pelas quais acreditava ser melhor para o “seu velho” partir antes dela. Com o verbo “partir” usado sempre de forma vaga e distante no futuro do subjuntivo, Marieta buscava afastar para bem longe de si a triste idéia de morte que desde algum tempo se mantinha persistente em seus pensamentos. No seu entender, ambos estavam muito velhos. Mas, o marido - pensava ela - não era forte o bastante para suportar a sua ausência. Ele estava por demais acostumado com os cuidados quase maternos que ela lhe dispensava todos os dias. Seu Antônio sofreria demais numa separação desta natureza. Era realmente bem mais fraco do que ela e para ele seria muito mais difícil, talvez impossível mesmo, reaprender a viver só outra vez.

Na verdade, Marieta acreditava que “estragara” o marido dando-lhe tudo na mão como viera fazendo durante todos aqueles anos de amorosa convivência. Como é que ele conseguiria sobreviver sozinho agora, perguntava-se, sentindo-se um tanto culpada e confusa quando se punha solitariamente a pensar no assunto. Dependendo dela praticamente para todas as coisas, o melhor mesmo era que seu Antônio fosse preservado da dor deste adeus.

Ela, ao contrário, julgava-se bastante forte. Nascera em julho, era de câncer e, como todos sabem, este é um signo de pessoas ativas, persistentes e possuidoras de inesgotável paciência. Saberia, portanto, suportar melhor e com a resignação necessária a ausência do esposo, caso ele “partisse” antes dela. Por fim, cabia-lhe ainda como mulher e, uma vez mais em sua existência, transcender a própria dor.

Seu Antônio realmente sempre fora muito dependente da esposa. Mal sabia fritar algumas batatas e quanto à higiene e limpeza do lar, nada entendia. Ainda naquela manhã ele mesmo dissera que se a esposa lhe faltasse teria necessidade de contar com alguém para cuidar de si, do horário dos remédios e da arrumação da casa. Estas palavras muito entristeceram Marieta e fizeram-na chorar boa parte daquela manhã. Talvez por isso ela tivesse se sentido tão mal durante todo o dia. Pusera-se logo a imaginar a variável malha de dificuldades que o seu homem enfrentaria em sua ausência, sentindo-se mais e mais entristecida na medida em que uma sucessão de pensamentos infelizes lhe chegavam como morcegos na noite.

Entretanto, aquela porta fechada momentos antes pela filha, isolara as duas mulheres num ambiente reservado de rara intimidade, afastando-as da agitação da festa e filtrando os sons provenientes da sala, deixando que chegasse até ali somente pedaços desconexos de conversas, vozes vagas e misturadas em temas quase ininteligíveis. Porém, mais do que isto, o isolamento do quarto transportou-as a um outro tempo e espaço, à época em que existira entre elas uma cumplicidade da qual fazia muito haviam deixado de experimentar juntas e de que sentiam falta agora. Estavam totalmente a sós e podiam se expressar sem o incômodo nem o receio de serem interrompidas ou perturbadas.

O sentimento comum que ambas estavam tendo naquele momento tinha sua origem num passado distante, no período da gestação de Ilma, onde a filha, como um segredo solitário e íntimo, pertencera exclusivamente a Marieta. E esta, desde o início da gravidez, soubera que carregava dentro de si a sua primeira garotinha, o seu mais importante sonho realizado. Por muito tempo, durante a infância de Ilma, este fato tornara as duas mulheres naturalmente íntimas uma da outra, totalmente cúmplices. Mas, hoje?? Bem, atualmente o máximo que se poderia dizer é que elas se avistavam uma vez ou outra na comemoração do aniversário de algum dos netos ou em familiares almoços de domingo.

Ilma encaminhou-se até a penteadeira. Pegando uma escova, pôs-se carinhosamente a alisar os cabelos da mãe, massageando com terna suavidade o seu couro cabeludo. Marieta chegara a fechar os olhos para melhor apreciar o prazer daquele instante. Qual a última vez que a filha lhe escovara os cabelos? Em que época passada de que não mais se lembrava teria ocorrido um outro gesto tão simples e agradável quanto aquele, perguntava-se, sem conseguir lembrar-se de quando ou onde. Com certeza, se ocorrera, fora tempos atrás, a filha devia ser uma menininha ainda.

Em seguida, Marieta descreveu para a filha todos aqueles sentimentos que a perturbavam, falou-lhe da tristeza que a acompanhava constantemente nestes últimos tempos e daquela idéia maluca que a perseguia sempre. As palavras lhe iam saindo pesadas de angústia e a maneira nervosa como se exprimia demonstrava a importância desmedida que o problema adquirira em sua cabeça depressiva.

Na realidade, desde algum tempo Marieta deixara de fazer uso dos medicamentos que vinha tomando diariamente nos últimos seis meses, quando principiara aquela tristeza aparentemente sem motivos. Os remédios tinham a função de controlar suas emoções e mantê-las num certo equilíbrio. No entanto, e estranhamente, logo que abandonara as pílulas, sentira-se mesmo razoavelmente bem, pelo menos até esta manhã. Também é certo que tivera algumas recaídas nas duas semanas anteriores, mas nada que a tivesse preocupado muito. Observara em si a lenta aproximação de uma leve tristeza e pouca disposição para realizar determinados atos ou trabalhos. Entretanto, porque estaria sentindo tanto desânimo agora? Como, de um momento para o outro, o seu estado de espírito se deteriorara tanto e tão repentinamente, sem que tivesse se dado conta de tudo de forma clara e rápida? E por que vinha-lhe a todo instante aquela incontrolável vontade de chorar e ela se apercebia em seguida com os olhos úmidos e o coração novamente apertado? Não conseguia compreender ou controlar por si mesma as próprias emoções, sem que necessitasse fazer uso dos medicamentos e do acompanhamento médico.

Ilma, surpresa por aquela multidão de palavras tristes, também não sabia o que fazer ou dizer. Ficara sem ação. Sentira uma infinita confusão dentro de si, uma variada mistura de sensações repletas de dor e carinho, compaixão e tristeza. A mãe, a pessoa a quem mais amava na vida, estava sentada na sua frente numa velha poltrona e chorava desconsoladamente. Ela, que por tantas e tantas vezes a socorrera na infância, sabendo dar fim às suas lágrimas e angústias infantis e que com a simples presença aliviava-lhe e acalmava-lhe o coração aflito, continuando pelo tempo afora a servir-lhe de alimento espiritual...! Agora a encontrava assim, depressiva e triste, sentindo-se impotente para ajudá-la, como se Marieta estivesse envolta por um muro de impossível acesso. O que fazer, como aliviar a dor que ela demonstrava sentir? Normalmente estes pensamentos voejariam ligeiros pela sua mente como terríveis moscas. Eram pesados demais e o só imaginá-los bastava para que se sentisse enfraquecida e tonta. Estava tão acostumada a ver a mãe como uma mulher forte e saudável, cuidando do marido e auxiliando as filhas e os netos sempre que requerida, que o encontrá-la neste estado fazia com que Ilma se sentisse perdida e desolada.

Decerto a mãe devia estar mesmo muito doente, concluiu Ilma. Pois, ainda que o problema que ela lhe estivesse apresentando fosse muito sério e real, era também, sem dúvida, uma daquelas questões sem solução. E, como costumam dizer os anciães e os sábios, “o que não tem remédio remediado está”. Ilma encontrava muita dificuldade para compreender o que estava acontecendo. Se o seu pai viesse a falecer antes ou depois de sua mãe, quê se haveria de fazer? Tudo seria como Deus quisesse. Cada um teria que buscar em si e na amizade dos filhos, parentes e amigos a força necessária para a superação da perda do companheiro. A mãe devia aceitar este fato e esquecer todo o resto. Era assim a vida e ela bem sabia disto.

Ilma ainda se encontrava perdida no meio do torvelinho de seus próprios sentimentos e idéias dolorosas, acompanhando com as mãos lentas o ondear dos cabelos de sua mãe, quando percebeu um bracinho fino empurrando lentamente a porta do quarto, até ela encostar-se na parede oposta. Então, uma vozinha suave e conhecida fez-se presente:

- Vovó, porque a senhora está ai neste cantinho com a tia Ilma? Está tão escuro!... vem prá cá, tia Ilma! O que vocês estão conversando ai, perguntava o garotinho insistentemente, puxando-as pela saia, como era seu costume.

Era Frederico, o primeiro neto de Marieta. Completara seis anos em junho, bonito, moreninho e forte. Até dizia com orgulho infantil que tinha namorada firme.

Mas, orgulho mesmo fora Marieta quem sentira no dia em que este netinho lhe nascera e ao carregá-lo nos braços pela primeira vez. Que alegria e prazer experimentara naqueles instantes! E quanta vontade de beijá-lo, abraçá-lo, acariciá-lo, não largá-lo mais! Como encheria de carícias aquele corpinho santo se a sua filha Joana e o marido desta, os pais do recém-nascido, não estivessem logo ali, pertinho, observando-a curiosos. É certo que beijara bastante o bebê e muito o aconchegara carinhosamente entre os braços, mas não o suficiente para que tivesse satisfeita a sua necessidade natural de afeto e expansão. Com certeza ela o teria acarinhado muito mais se estivesse sozinha. E quanto trabalho esse menino dera à mãe, pensou, e vislumbrou num segundo uma infinidade de imagens. Mesmo dentro da barriga de sua filha, ainda antes de nascer, o quê de confusão havia aprontado aquele garoto. “Quanto mal de estômago aquela coitada passara na gravidez, quanto enjôo, Santo Deus”...

Uma dezena de outras lembranças esvoaçaram leves como borboletas brilhantes na mente da velha senhora.

Já de noite, vindos da maternidade, Marieta comentou com “seu velho” que era como se estivessem começando tudo outra vez, revivendo nos netos os sentimentos e encantos que haviam experimentado com as próprias filhas. A principal diferença estava no fato de que desta vez tudo ocorria de uma forma mais tranqüila, suave e plena em disposição de tempo e cuidados. Seu Antônio simplesmente balançara a cabeça afirmativamente, concordando com a mulher.

Quando se conheceram, apaixonaram e se amaram, dando juntos os primeiros passos na nova vida em comum, nenhum dos dois velhos imaginaria todos aqueles caminhos que se formariam a partir deles, tantos e variados braços de rios, destinos que se teceram e continuavam sendo tecidos no dia-a-dia e infinitamente. Sequer passara pelas suas mentes que um dia estariam reunidos como naquela noite, para festejar exatamente a sua própria união, a casa cheia, alegre, rodeados pelas filhas, genros e netos.

Naquele instante, então, com os olhos ainda úmidos, quanto orgulho Marieta realmente sentiu do bordado da própria existência, de suas idas e vindas, de todos os caminhos trilhados naqueles quase oitenta anos de vida. Entretanto, também por um motivo ou outro, quantas estradas não se puderam palmilhar, quanta dor suposta e real igualmente houve ali, hoje guardada na memória, às vezes esmaecida, mas, de repente, tão viva, renascendo.

Ela sabia que aquele não era o momento adequado para ficar analisando a própria vida. Afinal, estava no meio da comemoração de seus cinqüenta anos de casamento e setenta e oito de nascimento. Aquela noite festiva era como uma sagração, o ápice. Ali se encontravam reunidos o reconhecimento e o agradecimento geral da família e todos os olhos e pensamentos voltavam-se para ela, exatamente como ocorrera muitos anos antes na festa que seus pais lhe haviam preparado ao completar catorze anos de idade, na qual fora o centro das atenções e onde teria como melhor presente, a maravilhosa surpresa do amor.

Sim, ela bem sabia não ser aquele o momento ideal. No entanto, algo a empurrava para frente neste sentido e ela não fazia mais do que obedecer àquela inquieta ordem interna. Sentia uma interessante necessidade de estar só e foi-se deixando ficar em silêncio, em paz, percebendo que as lembranças lentamente invadiam o quarto e que a memória a colocava em comunicação direta consigo mesma, com a criança e a jovem que existiam dentro de si, criando uma misteriosa ponte entre o passado e o presente.

Marieta sorriu e pediu que a filha avisasse aos convidados que ela se demoraria um pouco mais ali, que iria se “retocar” um pouco. Mas que não se preocupassem, não tardava a juntar-se aos outros. Estava tudo bem.

Ao encaminhar-se com o sobrinho para a sala em busca da irmã, Ilma percebeu já no corredor da casa os alegres sinais da festa que se desenrolava e os primeiros acordes da valsa Branca, que alguém se lembrara de tocar em homenagem à aniversariante. Aquela era a música preferida de Marieta desde os tempos da escola, desde a adolescência.

Sozinha no quarto, Marieta também ouviu os lentos e tão conhecidos movimentos iniciais de sua valsa predileta, percebendo que a mágica daquela música ia lentamente penetrando no ambiente, transportando-a a lugares e momentos diversos de sua vida. Eram recordações que se ligavam, se puxavam e se buscavam, se sobrepunham, nascendo, crescendo e passando, dando lugar a novas e novas imagens que se iam formando e se substituindo interminavelmente como os movimentos da valsa, como leves nuvens transportadas pelo vento. Com o mesmo sorriso estampado no rosto, Marieta parou por um instante, mirou-se amorosamente nos espelhos da penteadeira para, em seguida, fechar os olhos, suspirar profundamente e...

II

...de repente, ver-se novamente jovem, outra vez bela, a pele branquinha, os lábios viçosos tingidos pela graça vermelha do batom, os braços formosos e atraentes, as pernas bem feitas e torneadas, sem marcas ou manchas de qualquer espécie e, acima de tudo, feliz, muito feliz no centro de um imenso salão, rodeada pelas amigas e colegas da escola.

No fundo desta imagem, como uma porta mágica se abrindo no tempo, continuava ouvindo a velha valsa nos acordes do violino, exatamente como estava sendo executada naquela noite de festa. Mas já não saberia dizer com certeza se a ouvia no passado ou no presente, se o momento real que estava vivendo seria a comemoração do aniversário de seu casamento ou a antiga festa de seus catorze anos no grande salão da escola.

Os sentimentos, as emoções, os pensamentos, tudo se embaralhava em sua mente e se compunha numa única imagem construída por mil fragmentos distintos colhidos aqui e acolá. O ontem, o hoje, as lembranças brotando umas das outras, sua mãe, o pai, as irmãs, muito da infância e da adolescência carinhosamente guardado no peito e na memória, ressurgindo devagar...

(...fora sua mãe quem lhe escolhera o nome, recordava-se. Pela vontade do pai chamar-se-ia Branca, exatamente como na bela valsa de Zequinha de Abreu, tão amada por ele. “Branca Fonseca dos Santos”, apresentava-se de forma imponente e dramática para a irmã e as amigas nas brincadeiras da infância, sublinhando com orgulho especial cada sílaba daquele nome mágico e se inclinando numa extensa saudação. “Era branquinha quando bebê, parecia um leitinho”, lembrava-se com prazer das palavras e do próprio tom de voz de sua mãe ao repetir-lhe tantas vezes estas frases. E como ria a sua irmã Cândida ao comentar com ironia sobre o tom excessivamente branco de sua pele. “Podem-se ver as tuas lombrigas, Marieta, de tão branca que és; olhando a tua pele, dá até para saber onde estão teus glóbulos vermelhos ou brancos, dá para ver o que se passa atrás e por dentro de ti. Por isto não consegues esconder nada de nós”...)

Vinha daí e de muito mais o gosto que adquirira por aquela música, tudo ligado, amarrado em feixes de invisíveis cordas, sendo cada um dos nós um amor especial, saboroso e diferente, o carinho das irmãs, da mãe e do pai, o orgulho de dançar com ele na festa da escola, tê-lo ao seu lado egoisticamente só para si, charmoso e elegante, vestindo um fino terno de cor clara, exatamente como o trazia agora nos olhos da alma, com a valsa tecendo um pano de fundo, a brancura de sua própria pele se misturando à música, às brincadeiras das irmãs e ao nome postiço que o pai um dia lhe quisera dar e que achava lindo, tão mais lindo que o outro, o real, tudo junto, girando freneticamente à sua volta numa dança sem fim.

Sempre que se aproximava destas lembranças, os pensamentos de Marieta encaminhavam-se para o final da festa, buscando reavivar na memória as sensações do amor nascente e do primeiro beijo.

Agora era já uma outra imagem, nova lembrança que aportava em sua mente. Antônio, não o “seu” Antônio de hoje, que é como se acostumara a chamar o marido, mas um outro, o Antônio menino, que decerto não era o mais bonito nem o mais inteligente garoto da classe em que estudavam, mas que, mesmo não tendo nada que o diferençasse muito ou o elevasse acima dos outros alunos, fora aquele que lhe chamara a atenção, despertando nela um interesse especial, atraindo-a de forma diferente, fazendo com que na sua presença o seu coração batesse num ritmo rápido e atrapalhado. Fora para este garoto que - naquela distante noite de festa em que completava catorze anos - ela ofertou os lábios pela primeira vez num beijo.

Anos depois, o rapaz já homem feito, lhe confidenciaria que aquele também havia sido o seu primeiro beijo de amor. E contaria muitas e muitas vezes como aqueles momentos haviam sido tão difíceis para ele, como as suas mãos suavam e tremiam no ligeiro contato com as dela. O coração lhe batia alto, tão alto, pensava, que talvez a “linda menina” até o estivesse ouvindo e, percebendo a inexperiência e a agitação que tomavam conta de sua alma, se afastasse aborrecida da sua falta de jeito. Assim, antecipando-se à ameaça de uma possível fuga, reunira naquele instante toda a sua coragem, fingindo uma segurança que não tinha e um conhecimento que jamais possuíra, beijando-a como se já houvesse feito aquilo mil vezes.

“Linda menina”, recordava-se Marieta. Ela sempre se admirava ao ouvi-lo contar uma vez mais toda aquela história. Lembrava-se de tudo com carinho e encanto. Era como se o tempo houvesse parado, congelado naquele momento mágico, como se aquelas cenas estivessem acontecendo ainda agora e o passado tivesse sido totalmente preservado atrás daquela porta fechada poucos minutos atrás por sua filha.

Mesmo transcorridos tantos anos, as emoções permaneciam fortes, latentes, e o seu coração batia ligeiro. Pressentia e revivia tudo de novo. Sentimentos esquecidos, espreguiçando, voltavam a acordar devagar dentro dela e se sucediam novamente no tempo e no espaço da memória. O coração saltitando, batendo descontrolado, querendo como que pular boca afora, o rosto com certeza totalmente rubro, um delicioso desejo crescendo dentro dela, se avolumando como rio caudaloso, as faces se aproximando lentas e os lábios, antes tão secos, tocando-se já agora úmidos e se dando com prazer àquele primeiro toque de desejo. Com certeza ambos haviam ficado com as faces vermelhas, em chamas. Ela podia sentir o calor se espalhando por todo o seu corpo e se irradiando para além dele, na simples e eterna magia que faz com que a vida siga seu próprio rumo.

“Meu Deus!”, pensava Marieta, “se alguém tivesse visto, a mãe, uma amiga, uma das irmãs, com certeza correria a contar ao pai. Estava perdida!” Afastaram-se ligeiramente. Daí a pouco, entretanto, cedendo ao maravilhoso impulso do coração e desafiando uma vez mais o próprio medo e o receio de serem vistos, deram-se um segundo e mais demorado beijo que lhes confirmou e selou o amor por toda a existência que viria a seguir...

III

Todas as vezes que se punha a navegar em suas lembranças, Marieta concluía que fora feliz e que continuava a sê-lo. Pouca coisa teria a mudar ou a acrescentar em sua vida.

Ela acreditava que se lhe fosse dado renascer, reiniciar outra vez, repetiria tudo novamente com a mesma paciência e zelo com que construía na infância um castelo de cartas e como viera fazendo na realidade em todos os momentos de sua vida. Sentiria o mesmo orgulho de sua família, do pai, da mãe e das irmãs; apaixonar-se-ia e se casaria uma vez mais com o “menino” Antônio; teria as mesmas filhas e netos, Ilma e Joana, Frederico, Jonathas e Carolina, tudo, enfim, exatamente como acontecera em sua vida. Talvez eliminasse deste roteiro algumas cenas banais ou excluísse determinados atores sem importância. Poderia ser que alterasse também certas partes do enredo que nenhuma evidência haviam tido em sua história pessoal. Essa possibilidade de mudança apresentava para ela, além de tudo, um certo charme. Nada, entretanto, que viesse a alterar interferiria consideravelmente na essência daquilo que considerava ser a sua vida. Arrependimentos? Sim. No mais das vezes de atos que, por impossibilidade, deixara incompletos, certos gestos de amor a que não se entregara totalmente, sentimentos que nunca se permitira dar vida, momentos que não regressariam jamais e que ficaram perdidos no tempo. Mas, tudo bem posto e pesado, as boas realizações haviam sido em muito superiores às ruins.

Portanto, se nesta noite festiva - sentada na velha poltrona e diante do seu próprio reflexo nos espelhos da penteadeira - Marieta pensa e crê que tudo ocorreu exatamente como deveria ter sido, com a exatidão, a completude e a beleza próprias de uma existência profundamente vivida, não seremos nós que iremos contrariá-la em seu mágico pensamento. Ela nos observa, entre orgulhosa e satisfeita, do alto dos seus cabelos brancos.

Que a terra lhe seja leve, naturalmente leve!...

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