O Guardanapo
Professor Afrânio, como era conhecido, era um homem já beirando os quarenta anos. Não era alto, nem baixo. Mediano, assim como sua vida onde nada de muito bom nem de muito ruim costumava acontecer. Era figura misteriosa para seus alunos que raramente conseguiam decifrar aqueles olhos azuis, espólio que assim como o nome havia herdado do pai. Costumava dizer que a herança genética é a única herança que também é legada aos pobres.
Era um homem inteligente e de aparência não fazia má figura. O pouco trato que possuía para a sociabilidade talvez fosse a explicação para a solteirice tardia. Mas a sua falta de sorte concorria a pule de dez para a causa principal de seus insucessos amorosos.
Dia desses deslocando-se apressadamente entre uma escola e outra onde lecionava História para o Ensino Médio, Afrânio embarcou no metrô em Botafogo rumo à Tijuca onde em pouco tempo deveria estar dando aula. O vagão não era o dos mais lotados, já que o usava em um horário de pouca afluência de passageiros.
Ao sentar-se e acomodar sua pasta, sacou dela um exemplar amarrotado do Processo de Franz Kafka o qual já havia lido algumas outras vezes e a cada vez que lia era capaz de imaginar um destino diferente para o Sr. K.
Olhando por sobre as páginas amareladas da brochura pôde observar poucos metros a frente, em um daqueles bancos dispostos na direção contrária do fluxo, uma linda e elegante morena. Discreta no vestuário e na maquiagem, mas bela o suficiente para que se destacasse entre as demais mulheres no vagão.
Durante a viagem, por vez ou outra arriscava-se a fitá-la. Sua beleza era magnética e de certo que não era ele o único homem na composição à comê-la com os olhos como se diz por aí. Entre uma olhada e outra foi surpreendido por um olhar de retorno. Sim, ela também o havia reparado e eventualmente o encarava durante a viagem.
Foi no meio dessa troca de olhares e sorrisos tímidos que na estação Uruguaiana entrou um senhor de avançada idade, paletó surrado e de número ligeiramente maior que o corpo franzino que o vestia, trazendo na mão uma Bíblia tão curtida e antiga que o fizera pensar consigo mesmo se tratar de um exemplar original das sagradas escrituras.
E sem maiores contrangimentos começou, em altos brados, a apregoar a boa nova de Cristo, levando ao pé da letra a parte em que a bíblia recomendava ir e pregar o evangelho a toda criatura. Com a dentadura um pouco frouxa o que dificultava sua dicção e a voz rouca devido aos longos anos de sermão em locais públicos, o velho pastor abençoava a sua platéia involuntária com gotículas de saliva que entre uma palavra e outra proferia de sua boca.
Encorajado com a resposta às suas investidas oculares, Afrânio puxou do bolso um guardanapo de restaurante onde há alguns minutos havia devorado rapidamente seu almoço e com sua esferográfica anotou seu nome e número de telefone. Já próximo do seu destino o professor levantou usando toda a intrepidez que dispunha naquele momento e tomando de empréstimo mais alguma de forma a ficar todo endividado com a coragem.
No entremeio em que se movia em direção à moça, o pregador ancião caprichou no hebraico e - Hallelujah! - disparou contra a delicada testa da formosa dama um nada delicado e muito menos formoso perdigoto, que a atingiu em cheio.
Não dando conta do que havia acabado de acontecer, com todos os sentidos ocupados em fornecer meios para que realizasse a tarefa da qual se encarregara, chegou até ela e com um rascunho de sorriso na face, entregou-lhe o pequeno pedaço de papel calculando exatamente o tempo que restaria para deixar o vagão.
Ela com um sorriso constrangido o tomou rapidamente de sua mão e antes que esboçasse qualquer outra reação esfregou o guardanapo na testa limpando a cusparada com a qual havia sido premiada. Virou-se para ele - Muito obrigado, senhor. - e devolveu-lhe o papel.
Do lado de fora do vagão, com o papel amassado na mão, Afrânio via através do vidro distanciarem-se aqueles belos olhos negros, aquele sorriso encantador e o pequeno borrão de tinta azul que havia deixado em sua testa.