Os incompletos
- Eita, saudade tirana, Raimundo! Se ela não voltar juro que me jogo no rio.
Raimundo olha de tresvés para o amigo, Secundino, bicho besta! E dispara, irônico.
- Tu vai é se melá de lama, Dino! Que esse rio, baixerinho como tá, num afoga ninguém não.
Dino se morde, que diabo! O peste do Raimundo não tem pena do seu sofrimento? Aparecida lhe deixou faz dez dias e sua saudade é cachaça só. Nem trabalhar vai mais, com o pensamento nela e com vergonha dos colegas.
- Oxê! Apois eu morro de outro jeito. Dou um tiro no ouvido!
Raimundo não para a mão que move a desempoladeira na madeira do tamborete que Siá Rita encomendou. Mas dá um sorriso de meia banda.
- Com quem tu vai arranjar um revólver, Dino? Se tu nunca matou nem passarinho?
- Com o cabo Amaro ou com seu Dozinho, que diz que tem um trinta e oito retado!
Raimundo se dana! Eita, cabra besta, leso dos quintos!
- E você acha que qualquer pessoa te empresta um revólver, é? Chega tu e diz; - Raimundo afina a voz remedando o amigo - “Empresta um revólver pra ele, Seu Dozinho, que é pra mode ele dar um tiro no ouvido, por causa da mulher que deixou ele!”, é? E o Seu Dozinho, que deve ser maluco, vai e empresta e ainda dá os “sentimentos”, pra você morrer, é? Ora, faça o favor!
Dino se cala, pensando na tristeza da sua morte, o povo chorando com pena. Quem sabe ela voltasse arrependida, chorando ajoelhada junto à cova nova e caiada. Talvez ela fizesse uma jura de nunca mais abandonar sua cova e vivesse em oração.
Raimundo advinha seus pensamentos e sorri, com meia banda da boca.
- Tu pensa que se tu morrer ela volta, é, Dino? Volta nada. Se ela não volta com tu vivo, que tem o que dar, que dirá com tu morto, ficando podre debaixo de sete palmos! Volta já!
Dino olha para o amigo de infância e pela primeira vez repara.
- Raimundo, por que tu sorri só com uma banda da boca?
Raimundo para de sorri e diz, vermelho e vexado.
- Oxê! Por nada, é cada pergunta!
- Oxê, não! Mas por que diabo tu não sorri com a boca toda?
Raimundo estava pra mandar o amigo à merda. Que conversa mais besta!
A mão de Raimundo para, o pensamento longe, em Maria do Carmo. Quando ela foi embora levou com ela a metade do seu sorriso e parte de seu coração. Mas se dissesse isso a Dino era capaz dele mangar, ou então fazer aquela dor sem nome voltar a doer no seu coração ulcerado pelas cicatrizes da paixão. Teve pena do amigo de infância.
- Isso é munganga minha, Dino, deixa pra lá!
A mão recomeça o trabalho na taboa de aroeira, encomendada por Siá Rita que queria que os seus tamboretes durassem “filhos e netos”.
- Tô cego de sofrimento, Raimundo! – fala Dino, com as lágrimas a correrem – ela levou a luz da minha vista!
- Dino, meu irmão, num fica assim não. – diz Raimundo, finalmente apiedado – vai pra casa, dorme, descansa. Amanhã tem serviço.
- Até manhã, Raimundo.
- Até manhã, Dino.
No outro dia, Raimundo sorri de meia banda ao ver entrar na oficina seu amigo e quase irmão Dino. Repara que ele traz o olho esquerdo fechado, com a pálpebra caída. Interessas-se em perguntar como vai passando, como está.
Dino está sóbrio, e sem outros dramas diz que não pensa em se matar, Aparecida foi embora e não voltava mais, ele sabia! Não ia se matar, falou para o amigo Raimundo, mas ela havia levado consigo a metade da luz do seu viver.