Madrugada de Outono.
Era madrugada do dia 16 de abril de 2004, o vento frio de outono, varia a estreita rua de terra da periferia da cidade. Ao longe podia se ouvir passos de um caminhar monótono e metódico... Jovens, quatro ao todo. Apesar do frio, Esteves, vestia apenas uma calça jeans, e uma fina camiseta vermelha. Jovem de 20 anos, Esteves era magro, de aspecto fraco, fino, alto, não se sabe pela desnutrição quando era criança ou aparência física, da maioria das pessoas da periferia, tez negra, cabelo crespo, que já deixara crescer uns seis meses, sempre quisera fazer um rastafári, mas nunca passava do terceiro mês desta vez parecia ser pra valer. Os outros três jovens que o acompanhavam estavam bem mais agasalhados que aquele.
Haviam saídos de uma balada de rap, há pouco tempo, que ocorrera no outro lado da cidade. Antes de irem para casa resolveram passar no bar do Nego, conhecido de todos os moradores do bairro... Não sabiam eles que naquela madrugada suas vidas iriam mudar... Continuavam a caminhar... Ao se aproximarem do bar, notaram que as portas estavam já cerradas, mas por uma pequena fresta podia se vê que no interior havia luz, lá de dentro, ouviu-se um burburinho desconexo, as palavras eram soltas, viajavam por todos os cantos do lugar e iam para fora compor uma melodia irreconhecível. Aproximaram-se da porta, já velha de madeira e um pouco corroída pelos cupins, bateram três vezes.
De dentro do bar uma voz meio abafada, mas reconhecível e nítida logo indaga.
--- Quem é?
--- Sou eu Esteves, estou aqui com o Eder, o Marinho e o Reinaldo.
Houve então um instante de silêncio, após um ranger, a porta do bar se abria. Era o próprio Nego, que abrira e se apresara para pôr os jovens para dentro do bar. O fez e logo fechou a porta novamente. Nego era um senhor, ninguém sabia realmente sua idade e nem seu verdadeiro nome, todos o conhecia simplesmente por Nego, estatura mediana, tez negra, a responsável pela alcunha. Sobressaia por sob a camisa uma grande barriga, vestia uma bermuda surrada e uma chinela havaiana, já bastante gasta, que trazia na sola um grampo de cabelo, para segurar uma das alças e quando Nego andava fazia um ruído estranho. Nego trazia na boca seu quase inseparável cigarro, estranhamente suava, apesar do frio que fazia naquela madrugada de outono, no seu rosto podia se observa um quê de aflição e extrema preocupação. Meio atônito ainda, perguntou com uma agressividade incomum aos jovens.
---Vocês são loucos molecada? O quê querem? Morrer?
Um silêncio incômodo tomou conta do pequeno bar, uma lamparina iluminava o recinto, que contava com não mais que uns 7 metros quadrados, ali tudo era desordem e confusão; podia-se suspeitar que ali acabasse de passar um redemoinho, pelo bar corria uma atmosfera medonha e sufocante, contudo as portas permaneciam cerradas... Aquele pequeno bar com varias pessoas dentro... Aumentava a temperatura, apesar do frio... Fazendo subir um odor pestilencial que se misturava com o cheiro do cigarro de Nego e com odor etílico, que o bar tinha. Neste instante podia se ouvir lá fora, o latir de cachorros, miar de gatos, o cantar ébrio e embriagante de seres noturnos, os mais diversos, que habitam as madrugadas. Ouvia-se também o barulho do vento, um ruído estanho, monocórdio e profético, o mesmo vento que acompanhava os jovens no inicio desta jornada narrativa, se assemelhava ao canto da graúna, e trazia assim como esta, maus agouros para aquela madrugada de outono.
Mas logo este cantar fora abruptamente rompido, pode-se ouvir ao longe estampidos secos e distante que cada vez mais se aproximavam. Nego falou quase sussurrando:
--- A policia, ta na área hoje, eles estão loucos... Tão matando geral... O rabecão não parou hoje.
Foi quando se ouviu um carro parar em frente ao bar, todos lá dentro voltaram a ficar em silêncio.
Ninguém sabe quando tempo se passou entre o parar do carro e as batidas na velha porta o certo é que houve por um instante a impressão de que o tempo houvesse parado naquele momento... Três batidas metódicas na velha madeira despertou do transe os refugiados do bar. Nego repetiu a mesma pergunta feita a Esteves minutos atrás:
--- Quem é? Exclamou Nego. Uma voz calma e tranqüila, transpassando confiança respondeu prontamente do outro lado.
--- Abra a porta é a policia.
Nego voltou a suar frio e abundantemente, chegando a pinga-lhe gotas da face que iam se chocar com chão vermelho do bar, provocando estampidos secos que se assemelhavam a traques jogados ao chão. Nego pensava se abria a porta ou não. Hesitou por um instante e se dirigiu para abri-la. Logo levou um grande susto que o fez cair ao chão... Um estrondo, um crash, um quebrar de madeira, foi isso que provocara tal reação... Em seguida tiros, vários, ininterruptos, tomaram conta do bar, Esteves logo ao ouvir o primeiro disparo se atirou ao chão e rastejando se escondeu atrás das caixas de cerveja que se encontravam empilhadas no fundo, no canto esquerdo do bar. Dali Esteves avistou Nego, caído, ensangüentado e com o corpo todo furado de balas, correu com olhos avistou Marinho, também caído, ao seu lado um poça se formara, uma poça de cor rubra que escoria para fora... Tentou encontrar seus outros amigos em vão não via nenhum e os tiros continuavam. Em meio aos tiros ouvia-se risos sarcásticos e palavras grosseiras e racistas que se confundiam com os tiros, impedindo a compreensão. Esteves, apavorado levou as mãos aos ouvidos, tampando-os. E fechou os olhos.
De repente cessaram-se os tiros, ouviam-se apenas passos açodados, e o arfar de varias pessoas, Esteves abrira novamente os olhos, agachado pode ver vários pés negros, reluzentes, respingados de gotículas de cor rubra... Após o dilúvio, a calmaria, novamente o silêncio voltou a reinar naquela madrugada de outono... Silêncio interrompido pelo, ligar, do carro dos homens de pés negros, açodadamente indo embora para levar o terror para outro bar, outra periferia, em outra madrugada de outono.
FIM.