Arte de salpicar bitucas pela cidade
Arte de salpicar bitucas pela cidade
-Visto de um ângulo diferente, o centro da cidade não é tão ruim assim para se tirar um cochilo. Este foi o último pensamento de José antes de se deitar num chão gelado e forrado com jornais, com a cabeça malposta num enrolado de camisetas e um velho cobertor sobre o seu corpo jovem. Sob as luzes que nunca se apagam e o breu que os grandes prédios lhe proporcionam, ele tenta dormir. É difícil. O rapaz rola e se enrosca no cobertor, mas abre os olhos a cada passar de transeuntes ou viatura de polícia. Aquele movimento todo realmente o incomodava. Poderia ser tudo diferente, José mal conseguia respirar direito, fruto de uma briga que lhe rendeu uma facada no peito. Senta-se e pega um cigarro. –Dizem que o cigarro mata, se é assim ele é o meu amigo. Mata as minhas tristezas, afinal, é só disso que eu sou feito, tristeza. bem que o médico lhe disse para não fumar mais, disse que o peito poderia inchar e José morreria igual um sapo. Não posso dizer-lhes que isso não passava pela cabeça dele, digo isso pela sua relutância ao acendê-lo, o rapaz gesticulava enquanto falava sozinho, com o cigarro aparado nos dedos polegar e indicador. Acende. Olha para as pessoas que caminham apressadas na sua presença, e os ouvidos sempre atentos são interrompidos pelas buzinadas de algum motorista nervoso. A cada tragada José sabe que tudo pode mudar, que poderia ser diferente, mas no momento prefere apenas fumar o seu cigarro. A fome ainda não estava tão perto, o rapaz havia jantado uma canja de galinha feita com ossos que sobraram de um restaurante perto da catedral. O que dava mesmo era a teimosia de tapear o estômago, uma sem-vergonhice de assaltar uma geladeira... Mas afinal... Deixa pra lá. José quase sempre se esquece que mendigo não tem direito de comer quando bem entende, e sim quando a bondade dos outros lhe concede, mas está tudo bem, o cigarro ainda nem chegou na metade. José sonhava em ser arquiteto, sonho esse é devido aos tempos que ele ajudava o seu pai na construção civil. O rapaz lembrava dos arquitetos que iam visitar as obras que ele trabalhava, todos muito bem vestidos e cheirosos. Com pasta nos cabelos, pasta colada no sovaco e pasta na mão. O pai de José, que, aliás, tinha o mesmo nome, nem ousava olhar para os engravatados. O rapaz era novo, não entendia o porque disso, mas quando chegavam os pingüins ele olhava para baixo deixando o mestre de obras conversar com eles. Quando a curiosidade lhe teimava voltar o pescoço para trás, levava logo um beliscão do pai. E eram exatamente dos beliscões que o rapaz sentia mais saudade. Eles que lhe ensinaram a sofrer calado, sem nem mesmo abrir a boca, e olha que os beliscões doíam. Lição dada pelo pai José, que faleceu numa Quarta feira de cinzas, com uma navalha que lhe percorreu o pescoço. Suicídio? José nem gostava de pensar nisso.
Acabou o cigarro, o rapaz deita-se novamente para dormir. Que maldita hora para se lembrar do pai. José percebe que herdara tudo de seu pai, o alcoolismo, o tabagismo, o machismo e a pobreza. Só não teria a mesma coragem que o pai teve para se suicidar, o rapaz se achava bonito e beleza não se tolhe. Bate o sino da catedral, são duas da manhã, José então se levanta, enrola seu cobertor e pega o resto das coisas que estavam em uma sacola, respira fundo e começa a caminhar. Para onde caminhava nem ele sabia, mas caminhava renitente como se ao longe o estivesse esperando a solução. Solução essa que era de dormida tranqüila, sem acordares. José olhava para o alto, encontrava infinitos prédios, janelas acesas de alguém acordado como ele. O rapaz sentia uma vontade danada de tocar a campainha do edifício, chamar pela pessoa acordada e conversar. Quem é que acreditaria num mendigo? Afinal, mendigo pode apenas abrir a boca para pedir comida ou trocados. Nenhum falava nada de nenhum de coisa boa. Mendigo era apenas o câncer da cidade, ninguém sabe como e nem de onde surgiu, só sabem que lá estão eles.
José lembrava-se dos tempos sofridos de nordeste. Onde chuva era a mesa cheia de comida, e o sol era toalha de mesa. Lembra-se do dia inteiro carpindo terreno dos outros para ganhar uma medida de favo de feijão amargado. A sua mãe, que até hoje vive por lá, pegava a cinza do ferro de passar roupa e fervia junto com o feijão, a água tinha que ser trocava e fervida umas sete vezes para tirar o amargo, enquanto a criançada esperava ansiosa pelo jantar. Era uma comida ralinha, porém comida com muito gosto, afinal, foi troca de um dia inteiro de enxada na mão. Nunca mais a sensação da brisa do fim de tarde, o deitar na rede para esperar o apocalipse, o banho de cueca nas águas da cisterna, que quando alguém percebia, desatava a gritar palavrões. José acende mais um cigarro e caminha silencioso na sarjeta da avenida, pensa mais um pouco se não existe por lá lugar tranqüilo para se tirar um cochilo. Que nada, centro da cidade não é um lugar para dormir, nem mesmo o centro chega a dormir, São Paulo é a cidade que não adormece. José tinha família, bem, mais ou menos; a sua mãe não tinha condições de sustentá-lo, era o contrário, ele quem cuidava dos irmãos menores ao trabalhar na lavoura. Daí um revés da vida travou-lhe a coluna e transformou José num come e caga: -Enxada nunca mais! disse o doutor depois de examiná-lo numa esteira de milho num canto da sala. O rapaz sabia que estava sendo um peso para todos, pouca comida e mais uma boca era difícil... A mãe de José disse que ele faria um tratamento em São Paulo, a sua avó o estaria esperando na rodoviária e cuidaria muito bem dele. Quisera fosse dessa maneira. O rapaz pegou dois dias inteiros de ônibus aramado sem ter onde segurar, levando apenas um pedaço de rapadura e dois pés-de-moleque no bolso da calça. Viagem difícil... Muito buraco e muito sol nos olhos, pela manhã não dava para cochilar, e de noite o medo de morrer acidentado o deixava aflito.
José chegou em São Paulo de tardezinha, sem muito saber quem era a avó dele, apenas se sentou num banco de concreto que lá estava, e esperou. Se ao menos ele soubesse como ela estava vestida, papel na mão com o nome escrito não adiantava, afinal, o rapaz não sabia ler, apenas fazer contas. As costas nem doíam tanto assim, de qualquer forma foi melhor esperar. Esperou, esperou, depois deitou no banco de concreto para fazer dormida de dois dias de prontidão... Cochilou. O rapaz acorda com dedos pesados no ombro, sendo chacoalhado sem nenhum carinho, seria a avó dele? Que nada, eram os guardas da rodoviária, roupas novas, um preto e um branco: -Anda! Sai daí mendigo! É o que eu digo, vêm de longe para odiar a nossa cidade. dizia o guardinha enquanto levantava violentamente José: -Vai ladrão! Cadê os seus documentos? Saiu fugido da sua cidade, é? Matou quantos? –Que é isso meu senhor? Tenho documentos sim, e não sou nenhum vagabundo! –Todos dizem isso, cala a boca e me passa os documentos! José puxou a carteira e procurou entre papéis amassados: -Pronto, ta aqui. disse entregando o RG para os guardas. O preto tratou de pegar o documento e zombar do rapaz: -Nossa de onde você veio? De marte? o branco puxou o preto e os dois saíram andando para longe de José: -Hei! E o meu documento? Devolvam ele! –Calma que a gente vai avaliar na central e a gente já traz de volta! disseram se distanciando do rapaz. José se sentou no banco e esperou. Passa um senhor de jaqueta marrom e senta-se ao seu lado. O rapaz tenta conversar com ele, o homem nada diz, apenas estendeu o braço e lhe ofereceu um cigarro. –Obrigado, eu não fumo. –Olha aqui rapaz, melhor acender um porque esses caras vão demorar para te devolver o que levaram. José relutou, praguejou, até mesmo aquele nó na garganta de choro infantil se fez presente: -Se é assim, eu aceito. José pegou um cigarro da carteira do senhor, agradeceu e o guardou no bolso. Os dois se despedem, mas o senhor não vai embora sem antes acendê-lo para o rapaz. José tira o cigarro do bolso, estava um pouco úmido pelo suor do corpo cansado, mesmo assim leva-o à boca: -Toma aqui rapaz. Fica com esse maço que eu tenho outro cheio no carro, fique com deus. ao final da despedida, José mantém o cigarro nos lábios sem dar nem menos uma tragada. Pensa, reflete, sabe que estava fazendo uma besteira. Bem que a sua mãe dizia que só fumava quem tinha dinheiro. Que cigarro é coisa de fresco e coisa e tal. Dinheiro para que? E, aliás... O que é que a mãe de José sabia sobre a vida? –Ela nem liga pra mim... era o pensamento predominante do rapaz no momento. Tomou coragem e deu uma primeira sugada no cigarro. Engasga. Tosse. José joga o cigarro no chão e continua a esperar pelos guardas que levaram seu documento. Passaram horas, o rapaz percebeu que não dava mais para esperar, abaixou e pegou a metade do cigarro no chão antes de sair andando.
Já em terra paulistana, com os automóveis a cruzar-lhe a vista, José decide acender um cigarro. A fome já lhe vinha e comida, nada. Pede fogo para um sujeito que passava por lá, acende o cigarro. Chupa da primeira vez, engole da segunda, não vê graça nenhuma. Da terceira engolida que ele dá na fumaça avista uma viatura ao longe... Sem saber José dá uma tragada, tonteia. Era como se ele não estivesse ali. Era como uma pancada na têmpora que vem sem aviso. Era uma delícia.
José se cansa de lembrar e se senta na calçada. Joga a bituca no chão e se apóia nos cotovelos. Espera que amanheça rapidamente para tomar um café na padaria do seu Limeira. Se ele tivesse uma cama estaria feliz. Pensava logo em cochilar sem medo de acordar tarde. E agora José? Quem és nessa cidade? Quem é a cidade que te acolhe? Qual é a marca do cigarro que te alimenta a cabeça e definha-lhe o estômago? E agora? Qual será teu próximo passo?
Qual nada! Passo só dá quem deseja ir a algum lugar. José queria era ficar lá mesmo, deitar e dormir. Infelizmente não era tão fácil assim. A cidade não era dele, era apenas a cidade que lhe atrapalhava o sono. Fruto de maldormidas é que deixaram o rapaz com olheiras de velho. José se levanta e se coloca diante de uma vitrine, ajeita os cabelos com os dedos e caminha mais um bocado. Suicídio nunca passou pela cabeça dele, só morreria se fosse morte dormida, essa sim valeria a pena:
-Enquanto houverem cigarros no mundo, eu hei de viver!
Dizia sempre que não havia mais nada para dizer. Acende mais um e caminha para ver o que há de bonito na cidade. O que José mais admira são as bitucas espalhadas pelo chão: - Tem nada não, não podia fumar tudo mesmo! praguejava ao saber que outros sabiam do segredo da felicidade. Segurando o cigarro entre os dedos José olha para o céu, e ri ao ver que até mesmo deus fumava. –Quantas nuvens! Quantas bitucas brilhantes! Quanta alegria!
Esse era José. Nordestino. Mendigo e fumante grato por gozar de alegria que só os ricos aproveitavam. Até hoje ele tem dificuldades para dormir, mas não tem problema não. Basta acender um cigarro e esperar o sono de nocaute chegar.
O dia já vai amanhecer, faxineiras começam a lavar a frente da catedral, José se ajeita num banco perto para dormir o que a noite não permitiu. Cobre-se cuidadoso, e entre seus olhos que se cerram, um sorriso, uma alegria ao saber que Deus também tem um vício e só ele sabe qual é. Boa noite José. Bom dia José.