O velório do Mineiro

Eu não sou muito chegado a velório não. Quando vou, dou um tempinho de uma meia hora, só para a parentada do defunto ver a minha cara, depois finjo que vou ao banheiro e saio de fininho. Ver o morto? Nem danando! Eu  sou daqueles "véio" meio besta que ainda  acredita em assombração, e se eu ver o defunto, depois não consigo dormir a noite. Prefiro lembrar do cara quando  era vivo, e não esticado dentro de um caixão,  com o nariz empinado e todo entuchado de algodão.

E naquele domingo, vinha subindo a avenida do cemitério eu, o Nelsinho e o Jaba. O Jaba é um negrão estilo guarda-roupa,  meio quietão e que gosta de tomar umas canjebrinas nos finais de semana com o pessoal da escola de samba ali da Vila Alpina. Já o Nelsinho é daquele tipo de cara tirador de sarro, que não tem como você ficar triste perto dele. A gente nunca sabe quando ele está falando sério ou quando ele está brincando. Vocês nem imaginam o tanto de confusão que a gente já se meteu por causa das brincadeiras dele.

Nós tínhamos ido assistir  um festival esportivo no clube da prefeitura da Vila Prudente, e vinhamos conversando a respeito do quebra pau que ocorreu um pouco antes do jogo terminar. Foi porrada pra todo lado, até que chegou umas dez viaturas da Polícia Militar e acalmou os ânimos do pessoal. O juiz, coitado, deve estar correndo até agora.

Quando chegamos em frente a portaria do cemitério, o Nelsinho começou com uma conversa besta, de que um amigo dele estava sendo velado  ali, e ficou insistindo pra gente entrar com ele. Eu como já conheço o Nelsinho, fiquei de orelha em pé. Aquilo estava me cheirando confusão.

----Que porra de amigo  é esse Nelsinho? Vamos embora que eu estou com uma fome danada! Já são quase duas horas da tarde! Eu estou mais é querendo almoçar. --  Argumentei

Mas o desgraçado insistiu tanto que resolvemos acompanhá-lo.

----Você está falando sério ou é brincadeira sua? - Perguntou o Jaba.

----Estou falando sério! Vocês acham que eu ia brincar com uma coisa dessa!

Entramos por um corredor que ia dar em, mais ou menos, umas quinze salas onde são velados os corpos. De repente o Nelsinho começou com uma conversa sem pé e sem cabeça.

----Eu espero que tenha cerveja prá gente beber!

----Cerveja? -- Perguntou o jaba.

----È claro! Já faz uns três meses que eu fui convidado para esse velório!

----Não estou entendendo? Nós estamos indo para um velório ou para uma festa? -- Perguntei.

----È velório, mas o Mineiro gostava de cerveja pra caramba!

----Que Mineiro? -- Perguntou o Jaba.

----O sujeito que morreu! -- Respondeu o Nelsinho.

No meio do corredor o Nelsinho apanhou uma vassoura, que alguém da limpeza havia deixado encostado a parede,  ergueu-a como se fosse uma espada e começou a gritar:

----Se não tiver cerveja nessa porra, eu vou dar uma vassourada tão grande na cabeça do mineiro, que ele vai sair correndo do caixão!

O Jabá começou a rir feito um doido. Tanto ria como tossia. O pessoal que estava ali no velório começou a olhar feio para nós.

----Para com isso! Vamos respeitar os parentes do defunto. -- Pedi a eles.

Só que ao invés de pararem , eles olhavam pra minha cara e riam ainda mais. Para falar a verdade, tanto eu como eles, já estávamos pra lá de Maracangáia. Tínhamos tomado umas vinte cervejas, e umas dez caipirinhas enquanto assistiamos ao jogo. E ai não teve jeito; comecei a rir também. E o Jabá mais tossia do que ria. O pessoal não parava de olhar para nós e cochichar.

----Se você não parar com essa merda desse cigarro, o próximo velório vai ser o seu! -- Falei para o jabá que não sabia se ria ou se tossia.

O Nelsinho não perdeu a oportunidade de tirar um sarrinho com a cara do negrão.

----E vê se quando morrer avisa a gente com antecedência. Eu sou uma pessoa compromissado, e não posso adiar os meus afazeres só prá vir no seu enterro. Velório  que me avisam em cima da hora eu não vou. Tem que me avisar pelo menos uns quinze dias antes que é para eu poder me programar. -- Gritava o Nelsinho no meio do corredor, fazendo o maior escândalo.

E o Jabá que não era de falar muito, quando falava era mais escandaloso que o Nelsinho. Um vozeirão de trovão que dava pra escutar lá na Praça da Sé.

----Vá te catar ô meu! Vai secar o cão! Você vai morrer primeiro que eu, e ainda vou dar uma mijada em cima da sua cova.

A essa altura do campeonato nós já não estávamos nem  mais ai com a hora do Brasil. Tanto falávamos alto como nos raxávamos de rir.

De repente um senhor, com uma boina na cabeça, veio falar conosco.

----Gostaria de pedir um pouco de respeito aqui neste recinto, pois ali naquela sala está sendo velado um pai de família, e  gostaria que os senhores levassem em consideração a dor que os familiares estão passando neste momento.

----Tá certo! Tá certo! Desculpe-nos! -- Falei tentando amenizar as coisas.

----O senhor é parente do Mineiro? -- Perguntou o Nelsinho.

----Sou primo dele! O senhor conhecia ele?

----Aquele arrombadão? O desgraçado era meu amigão do peito. O senhor não imagina o tanto de cerveja que a gente bebeu junto e o tanto de puta que a gente comeu ali na Rua Aurora! -- Falava o Nelsinho em voz alta, já na intenção de provocar os indivíduos que estavam olhando feio para nós.

Aquilo foi a gota d'água. Os parentes do defunto rodearam a gente, e ai começou o bate boca. E o Jabá, que não era de deixar para lá, já quis encarar o pessoal.

Por sorte apareceu um rapaz que era parente do tal mineiro e  conhecia, também, o Nelsinho. O rapaz  interviu, e depois de uma meia hora de pega não pega, conseguiu acalmar o pessoal. Mesmo assim ainda tomamos uns empurrões e uns chutes na canela. Nós estávamos em três e eles estavam em uns vinte. Se não fosse o rapaz a gente ia tomar um pau danado. Só sei que para não apanharmos  tivemos que sair dali rapidinho, pois apesar da calma momentânea, eles ficaram olhando meio torto para nós, e cochichando baixinho, dando a impressão que estavam querendo armar uma casa de caboclo .

Quando chegamos do lado de fora, já na avenida, o Nelsinho queria voltar lá pro campo de futebol e chamar  uns camaradas nosso para brigar com os parentes do defunto.

----Os cara são folgados! Aqui é nossa área! Não vamos deixar barato não! -- Gritava o Nelsinho inconformado e mostrando a canela toda ralada.

----Que nada, meu! Vamos sair fora! Nós estamos errados! Ali não é lugar de armar barraco! -- Falei para o Nelsinho.

Com muito custo conseguimos acalmar o Nelsinho, e convencemos ele a irmos embora. Já havíamos nos afastado alguns metros da entrada principal do cemitério, quando o Nelsinho voltou correndo até o corredor da entrada do velório e começou a gritar para o pessoal que estava lá dentro:

----Ei! Ei!

O pessoal desviou a atenção para o Nelsinho, que encontrou uma maneira de se vingar dos pontapés que havia tomado.

----Aí ò... enfia esse defunto no rabo. -- Gritou ele mostrando a língua para o pessoal que estava lá dentro.

Meu Deus do céu! Nunca corri tanto na minha vida como corri naquele dia. Se os parente do tal mineiro  catassem  a gente "nóis táva fudido". Eu acho que até o defunto correu atrás de nós.

Mas também eu jurei uma coisa: Nunca mais eu vou em um velório com o Nelsinho.

Isso tudo aconteceu a quase trinta anos atrás. Ontem encontrei com o lazarento, que já fazia um tempão que não o via. Ele agora mora em São Vicente no litoral paulista e já é avô, mas continua maloqueiro do mesmo jeito. Ficamos um tempão conversando, eu, ele, sua filha e sua esposa. Há muito tempo que eu não dava tanta risada. Começamos a relembrar as zoeiras  e as confusões que a gente arrumava, e no fim a saudade de todo aquele pessoal da nossa época foi tanta que  nossos olhos marejaram-se, e nós só não choramos por que  somos dois velhos bestas com mania de machão.

                                         FIM

"Peço desculpas aos meus leitores por algum erro de ortografia, pois não sou escritor, sou apenas um humilde narrador de histórias. Caso encontrarem algum erro peço a gentileza de me avisarem  para que eu possa fazer as correções necessárias. Muito obrigado."