JUSTIÇA AGRESTE

1

Grande, forte, amulatado, fala, sem arrodeios:

- Você Miguel, tem de fazer o que eu mando. Estou pagando. Estamos entendidos, amarelinho?

O trabalhador humilde, cabisbaixo, aquiesce, com voz fraca:

- Tamos sim, senhor.

Então a voz torna-se mais grossa e, gritada:

- Possa voltar pro o serviço e comandar os outros pra "limpa" ficar pronta ainda hoje. Possa ir!

O homem pequeno, magro, sem erguer a cabeça, torna a falar:

- Com vossa licença.

Afasta-se, em passos lentos, trôpegos.

O patrão sorri e, baixinho:

- um "lascado" desse ainda querendo aumento! Se 'banha" ainta ter donde morar nas minhas terras...

Acende o cigarro e fechando os olhos, cadencia-se na rede, relaxando-se. Esse pessoal é ruim de serviço: se a gente facilitar...

- Mas, comigo a coisa é diferente! Quero o trabalho bem-feito.

Passos sutis se achegam e a voz feminina:

- Vai querer um cafezinho, Seu Damião?

Mantendo-se de olhos fechados, ele responde:

- Possa trazer.

Os passos apressados retrocedem a cozinha após as duas salas conjugadas, de quartos nas laterais. Cabra mais posudo esse Damião. Humilhou mais uma vez o pai, como se não a tivesse tirado de casa, a fim de lhe satisfazer nas posições que lhe exige na cama, à noite...

Despeja o líquido no caneco e retrocede ao terraço.

A vida da gente é cheia de surpresas... Como se cumprissemos uma ordem, uma sina.

- O café.

- Espera aí,Verõnica.

A voz que a irrita, a diminui cada vez mais. Até quando?

A mão grande estende-se e os dedos grossos entrelaçam-se sobre o caneco, enquanto a mulher jovem desvia o rosto, no disfarce de se esconder ante a visão da luz solar sobre o terreiro defronte.

Paciente, controlando-se ela espera. E a voz grossa, acompanhada do sorriso no rosto largo, de traços grosseiros:

- Tome o caneco, morena bonita. E por que a "cara amarrada?".

- Nada não.

- Apois vá cuidar dos seus afazeres.

Sem nada responder, atende. Na cozinha, através da porta aberta, que se comunica com o terreno que se estende, crescendo adiante, avista a figura diminuta do pai e os quatro homens no serviço de "limpar" o terreno, sob o sol que esquenta na manhã de verão. O pai que a "perdeu" para Seu Damião, que...

- Pra que ficar assim imaginando nas coisas?

Sim, pra quê? Repete-se e, busca se prender à obrigação de cortar a carne, no preparo do almoço de logo mais.

2

O cavalo conduzindo o homem grande aproxima-se trotando, na cadência de bom animal de sela. A tarde escurece. De um juazeiro próximo, a rolinha canto o seu "fogo-apagou, fogo-apafou, fogo-apagou..." E, vindo de trás do tronco largo da velha árvore, o homem pequeno, magro se põe à frente da montaria, com a espingarda na mão, que aponta ameaçadora.

- Mas, o que danado é isso, amarelinho? Você tá pensando o quê, seu f...

Os disparos. O corpo que tomba sobre a sela, o animal que corre assustado... E o desabafo da voz que sempre atendeu à ordem que recebia aos gritos do patrão, que agora se lhe tornou alvo da revolta de oprimido:

- Cabra safado! Roubou minha filha, usou dela como quis... e ainda me tratava como se eu fosse um cão!

Então se apressa atrás do cavalo, para se certificar de que o gigante está morto, enfim, o mal não mais existe.

Com as detonações a rolinha alçou vôo à árvore defronte, onde se calando, espera quietinha. Embaixo, os passos passam rápidos, buscando. A noite cai, de repente, envolvendo o mundo agreste.

* * *

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 21/12/2008
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