O PROFESSOR CAOLHO
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Dos dois olhos que temos; serve-nos um para ver os bens e, o outro, para ver os males da vida. Muita gente possui o mau hábito de sempre fechar o primeiro e, poucos fecham o segundo; talvez seja por isso que há tantas pessoas que preferem ser cegas, a ver tudo o que vêem. Felizes os caolhos que são privados desse olho mau que tudo estraga a um simples olhar! Era o caso de Arnaldo.
Seria preciso ser cego para não ver que Arnaldo era caolho. Era de nascença; mas era um caolho tão satisfeito com a sua condição que jamais se lembrara de desejar outro olho. Não era a riqueza que o consolava dos malefícios da natureza, pois não passava de um simples professor e não tinha outra coisa senão os seus alunos. Mas era feliz e, pois, mais um olho e menos trabalho pouco contribuiriam para a sua felicidade. Trabalhava de manhã no que trazia da escola para a casa, trabalhava de tarde em sala de aula, comia na cantina da escola, trabalhava de noite como à tarde e, quando conseguia, dormia. Considerava cada dia como uma vida à parte, de modo, que a preocupação do futuro jamais lhe perturbava o gozo do presente. Era ,como vêem, ao mesmo tempo caolho, professor e filósofo.
Por acaso, numa bela tarde, viu passar pelo corredor que dá acesso as salas de aula da escola, numa suntuosa saia, uma robusta professora substituta, muito bela, que tinha um olho a mais do que ele,. Como os caolhos não diferem dos outros homens, senão porque têm um olho de menos, apaixonou-se perdidamente pela princesa do magistério. Digo, que quando se é professor e caolho, o melhor não se apaixonar, principalmente, por uma princesa e, o que é pior, por uma princesa que tem dois olhos. No entanto, como não há amor sem esperança e, como o nosso professor amava, ousou amá-la.
Tendo mais pernas que olhos, certo dia, Arnaldo seguiu, durante quatro quadras o carro da sua deusa, que devido à carteira de habilitação ser presente de um admirador, ainda não dirigia velozmente.
Arnaldo correria junto às rodas do carro, voltando seu olho bom na direção da dama, espantada de ver um caolho com tamanha agilidade. Enquanto ele provava o quanto se é infatigável quando se ama; um animal selvagem, perseguido por policiais, atravessou a rua assustando a bela. Ao desviar-se do pobre animal, perdeu o controle da direção, subiu na calçada e foi parar a beira de um grupo de estudantes que tocavam um pagode. Seu apaixonado, ainda mais assustado do que ela, abriu a porta do carro, cortou o cinto de segurança e com maravilhosa habilidade tirou-a do veículo avariado; a dama, que não estava menos branca do que ele, apenas passou por um grande susto.
— Arnaldo! – disse-lhe ela – jamais esquecerei que te devo a vida; pede-me o que quiseres, tudo o que tenho está a teu dispor.
— Ah! – respondeu Arnaldo, emocionado – poderia lhe oferecer muito mais, mas só tenho um olho e, assim, sempre lhe oferecerei menos; pois, e você tem dois; todavia, o olho que lhe contempla vale mais que dois olhos que não vêem os seus.
— Eu desejaria te dar outro olho – disse-lhe – mas só a tua mãe podia te dar esse presente. Será que pode acompanhar-me até minha casa?
Dizendo essas palavras, deixa o carro para o mecânico, já no local e prossegue o caminho a pé. Por mais que Arnaldo lhe oferecesse o braço, não quis a dama aceitá-lo, sob o pretexto de que o braço estava muito sujo. Com efeito, horas antes, um aluno, durante o recreio, saltitando que nem um cabrito chocou-se com o professor e lhe derrubou toda a sopa de sua caneca sobre o braço de Arnaldo.
Tinha ela pequeninos pés, e calçava sapatinhos ainda menores, de maneira, que não foi feita para longas caminhadas, nem estava devidamente calçada para isso. De que servem sapatos bordados e lantejoulados em um caminho pedregoso, onde só podem ser vistos por um professor e, ainda por cima, por um professor que só tem um olho?
Marylene, este é o nome da dama, avançava como podia, amaldiçoando o seu sapateiro, escorchando os pés e dando um mau jeito a cada passo. Fazia hora e meia que ela marchava como uma grande dama quando, ao tomar um atalho, que atravessava alguns terrenos baldios, tombou de fadiga.
Arnaldo, cujo braço ela recusara enquanto estava de pé, hesitava em lhe oferecer agora. Tinha, ela, um vestido leve cor de prata, que lhe ressaltava a beleza do talhe; e ele, um blusão pardacento, todo manchado de sopa. Havia comparado as suas mãos musculosas e cobertas de calos com as duas pequenas mãos mais brancas e delicadas do que lírios. Observa, enfim, os lindos cabelos loiros de Melina, penteados em tranças e cachos; e ele, para colocar-se ao lado disso, não tinha mais que umas eriçadas crinas negras, cujo único ornamento era um boné da Fome Zero.
Melina tenta erguer-se, mas tomba em seguida, e tão desastradamente, que o que ela deixou Arnaldo ver tirou-lhe todo o juízo que vinha tentando manter. Esqueceu que era professor, que era caolho; mal se lembrou que amava, e serviu-se dos direitos à brutalidade que não lhe dava a sua condição de professor; foi brutal e feliz. A princesa, então, estava sem dúvida desmaiada, ou abençoava decerto o destino pelo fato de todo infortúnio trazer consigo o seu próprio consolo.
A noite estendera os véus no horizonte, e ocultava na sua sombra a verdadeira felicidade de Arnaldo que desfrutava os prazeres dos perfeitos amantes e, desfrutava-os da maneira mais perfeita; os desmaios de Melina voltavam-lhe a cada momento, e a cada momento o seu amante recuperava forças.
Tantos foram os desmaios que Arnaldo, cansado, e sem saber o endereço de sua deusa, resolveu levá-a para seu pequeno e humilde quarto, em um bairro nos arredores da cidade. Por sorte, arrumou carona assim que chegou a calçada.
Já, em seu quarto, deitou Melina, ainda com os incontidos desmaios e sentou-se a seu lado; sondou com seu olho bom o cubículo que morava e, sentiu que não era digno de uma princesa. Então, como homem arrebatado, mas como péssimo católico, reza:
— Poderoso Protetor dos Professores (todos têm um, até os animais) só o que falta à minha felicidade é ser sentida por aquela que a causa; enquanto estou no teu paraíso, divino protetor, concede-me a graça de ser para os olhos de Melina o que ela seria para os meus olhos, se houvesse luz, aqui.
Mal acabou de rezar e uma luz intensa se espalha por todo o quarto; em meio à luz, divisa Arnaldo, o semblante de uma fada (sim, uma fadinha com varinha e tudo mais). Arnaldo tenta dizer alguma coisa, mas as palavras não lhe saem; a fada aproveitando a deixa, fala:
— Não se espante! Sou a esposa do seu protetor. Ele não pode vir; são tantas as solicitações, que nem mesmo com uma grande equipe estão dando conta. Fiquei penalizada e resolvi ajudá-lo — e tirando um objeto de uma caixinha dourada, continua – Vê este anel, a partir do momento em que colocá-lo em seu dedo você será o “Senhor dos Anéis” e tudo irá mudar na sua vida; mas, cuidado, se perdê-lo o encanto se desfará e com ele a sua princesa também!
Dito isso, desaparece em meio a uma nuvem de fumaça.
A aurora, sempre demasiada diligente para os amantes, surpreendeu a ambos. Mas qual não foi o espanto de Melina quando, abrindo os olhos aos primeiros raios do dia, viu-se num lugar encantado; com um homem de nobre estrutura, cujo rosto se assemelhava a um astro global! Tinha, Melina, faces de rosa, lábios de coral; seus grandes olhos, ao mesmo tempo ternos e vivos, exprimiam e inspiravam volúpia; sua longa cabeleira, presa por um atilho de diamantes, flutuava livremente e um tecido transparente, bordado de pérolas lhe servia de veste, sem nada ocultar da beleza do seu corpo.
— Onde estou, e quem é você! – exclamou Melina no auge da surpresa.
— Sou – respondeu ele – o miserável que teve a ventura de vos salvar a vida, e que tão bem cobrou o seu trabalho.
Melina, tão satisfeita quanto espantada, lamentou que a metamorfose de Arnaldo não tivesse começado mais cedo. Os dois amantes estavam em um magnífico palácio, num vestíbulo de mármore, ao som de mil vozes e de mil instrumentos; dali passaram para uma sala soberba, onde os esperava há mil duzentos anos um festim delicioso, sem que nenhum dos pratos houvesse esfriado. Puseram-se à mesa e foram servidos, cada um, por escravas da maior formosura. A refeição foi entremeada de concertos e danças e, quando terminou, todos os seus alunos vieram, na maior ordem, em diferentes grupos, prestar juramento de fidelidade ao Senhor dos Anéis e beijar o dedo sagrado que o carregava.
Havia perto da casa de Arnaldo um pesado devoto do garfo que, não podendo ir lavar-se no chuveiro, fazia a água do mesmo vir a seu quarto, mediante uma pequena retribuição que pagava a uma menina. Acabava ele de fazer a quinta ablução, a fim de se preparar para a quinta refeição; quando sua criada, menina estouvada e muito preguiçosa, desembaraçou-se da água lançando-a pela janela. A água caiu sobre um infeliz profundamente adormecido junto a um toco de cerca que lhe servia de apoio. Acordou com o choque. Era o pobre Arnaldo que, durante o seu devaneio encantado, perdera nas brincadeiras com as mãos, o anel e, para cúmulo da desgraça, tinha deixado um dos olhos no caminho. Lembrou-se, então, de que bebera na véspera grande quantidade de álcool, que lhe adormecera os sentidos e aquecera a imaginação. E Arnaldo, que até aquele instante amara essa bebida por gosto, começou a amá-la por gratidão. Assim, voltou alegremente ao trabalho, resolvido a empregar seu salário na aquisição dos meios para tornar a ver a sua querida Melina. Qualquer outro ficaria desolado de ser um mísero zarolho depois de ter tido dois lindos olhos; depois de haver gozado os favores de uma princesa mais bela do que as amantes de um harém; depois de haver reinado sobre todos os seus alunos; mas Arnaldo não possuía o olho que vê o lado mau das coisas. ®Sérgio.
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Este conto foi baseado no de François-Marie Arouet (Voltaire – 1694 / 1778) – L’Aveugle Dans Uns Chargeur de L’Oeil [1747] – Cuja obra - “Dossier des Histoires” - teve muito sucesso na França do século XVI.
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