ANACLETO E A SÃO SILVESTRE

Um sujeito chamado Anacleto nasceu, tal qual Jesus Cristo, em meio a muita pobreza. Tropegamente, aos cinco anos, iniciou sua jornada de trabalhador, vendendo picolés numa velha caixa de isopor. Negociou também doces como "quebra-queixo", "machadinha", "pé de moleque", "maçã do amor", entre outros. Guloseimas que deliciaram o povo daquele bairro humilde.

Menino ainda, bem que tentou estudar. Fez os quatro primeiros anos escolares com muito sacrifício. Precisava ganhar dinheiro para ajudar no sustento dos pais analfabetos e das quatro irmãs, que nasceram, em intervalos, se muito, de um ano. A vida cobrava trabalho e mais trabalho e Anacleto não passou mesmo do quarto ano primário.

O menino cresceu, ficou moço! Logo o pai morreu de tanto beber e a mãe viveu mais uns poucos anos, definhando de uma doença incurável.

Esforçado como era, aos dezoito anos, conseguiu emprego numa empresa coletora de lixo, profissão - lixeiro. Tudo com muita dignidade e senso de responsabilidade, pois o bom rapaz sabia que sobreviver na cidade grande não era brincadeira! Agradecia a Deus pelo labor garantido e pelo consequente pão à mesa.

Ele, um chefe de família aos 20 anos, responsável pela casa e por suas irmãs; inteligente e aberto, cuidava de todos os detalhes daquela vida dura, simples e harmoniosa. Um fato curioso e pertinente: em meio a tantas mulheres, preocupado com todas, especializou-se na compra até de roupas íntimas para cada uma delas - um paizão!

Esse homem era autodidata. Não se sabe como, conseguia ótimos livros sem custo algum, lia muito. Conheceu as biografias de Gandhi, Luter King, Kennedy e Madre Teresa de Calcutá. Vibrou com as histórias e conquistas de atletas olímpicos como Ademar Ferreira da Silva, "João do Pulo", Steve owett, Carl Lewis e tantos outros. Viveu intensamente a era Airton Senna. Viu e ouviu tudo que pôde sobre Pelé e hoje tem como seu ídolo maior Felipe Massa.

Sonhou muito ser igual a esses que para ele foram e são seus mestres mas acordava e a lida o chamava. Sua realidade era o caminhão de lixo que não parava, de segunda a sábado. Podia estar sob um causticante sol de quarenta graus ou, debaixo de temporal, inverno ou verão. Anacleto corria, corria, abaixava, levantava, arremessava lixo e mais lixo sobre o fedorento veículo.

Á noite, moído de cansaço, ele dormia e sonhava, como sonhava! Via-se bacharel em direito, engenheiro, professor, um brilhante senhor!

O tempo célere foi deixando muitas coisas para trás. Nosso herói mesmo não voltando mais à escola conseguia sempre aprender algo novo.

Numa passagem de ano, reunido com a família e amigos, assistiu na tv, como já fizera nos anos anteriores, à tradicional corrida internacional de São Silvestre.

Nessa ocasião a prova apresentou-se diferente para ele. O dia era especial. Ele não sabia o porquê mas os comentários dos narradores, as histórias dos competidores, os trechos do percurso mostrado, a disputa entre brasileiros e estrangeiros...nada escapava aos seus olhos e ouvidos atentos.

Anacleto fez uma análise do que seria preciso para estar no meio da linda festa de anônimos e consagrados atletas e anunciou prontamente, a todos os presentes:

"Ano que vem estarei lá".

A surpresa foi geral, mas todos o animaram e incentivaram, pois sabiam da fôrça e determinação desse jovem destemido que nunca deixou as adversidades da vida abalarem seu espírito.

O decidido "novo atleta", agora com 22 anos, fez uma analogia entre o preparo necessário para disputar esse tipo de corrida e seu trabalho de lixeiro. Concluiu que, basicamente já tinha bom condicionamento físico para tal empreitada. A profissão de coletor de lixo não era mole não!

Como não tinha vícios, levava seus dias de forma regrada e apenas nutria um grande amor por sua noiva. Assim não foi difícil pegar as coordenadas com um amigo especialista em provas pedestres.

O fato é que decorridos alguns anos, Anacleto tornou-se excepcional atleta - maratonista. Conseguiu os primeiros bons resultados entre o trabalho, os treinos noturnos e as competições nos finais de semana.

Apesar de suas grandes performances, ainda não conseguiu nenhum primeiro lugar mas já subiu a pódios inúmeras vêzes, colocando-se em muitas ocasiões entre o segundo e quinto colocados. O primeiro lugar é questão de tempo.

Transformou-se num atleta de elite. Com patrocinador e ajuda de custo teve o prazer de - competindo - conhecer Holanda, Japão, EUA, Alemanha e outros tantos países de lingua latina.

Humildemente, Anacleto continua a reverenciar seus ídolos, seus ícones e principalmente ao "Todo Poderoso" - é assim que se refere a Deus - mas ainda não se apercebeu que também é um ídolo de milhares de aficcionados pelos esportes em geral. Sua própria história já faz com que o coloquem em primeiro lugar na galeria dos iluminados e predestinados a serem exemplos de hombridade e cidadania, nesse mundo onde impera a impunidade e a falta de caráter.