HOUVE UMA VEZ UM VERÃO

Meu nome é Antonio, sou casado há pouco tempo com a Lú. Um dia serei advogado, mas por enquanto dou um duro danado no banco.

Colegas e amigos me conhecem pelo excelente senso de humor. Estou com a perna engessada. Quebrei a tíbia jogando futebol. Os colegas de departamento haviam me avisado que o pessoal da cobrança sempre dividia por cima da bola. Eu não acreditei.

Estamos em 1986, tempos difíceis estes, sem graça. Por exemplo: O que fazer neste feriadão de fevereiro em Porto Alegre, duro? Um colega, não sei se por simpatia ou culpa (foi o que entrou por cima da bola) me convidou para um final de semana na praia. Magistério. Não queria deixar transparecer minha mágoa, mas praia com este gesso? Pensei na Lú e resolvi aceitar. Meu colega tinha um fusca, mulher e filhos, não contei quantos. Agora, no entanto já estava combinado, não voltaria atrás. Tratei de acomodar a perna engessada da forma mais confortável possível, temendo pelo meu bom humor.

A viagem de ida foi relativamente calma. O amigo era calmo, ou melhor, lerdo. Sessenta por hora, curvas a trinta. Quatro horas depois, a praia. A praia e os pingos, pois começara a chover. Chegando a casa o primeiro grande susto: Caberíamos todos? Por certo daríamos um jeito, éramos jovens, fortes, dispostos e, mesmo apertados, certamente estaríamos melhores do que no bafo de Porto Alegre. Ademais, haveria de ser uma chuvinha de verão e a areia da praia estava logo ali nos esperando, iluminada pelo solaço de amanhã. Por enquanto era chuva e chuva. Na casa tratei de acomodar a perna de formas que ficasse longe dos bolaços, tropeções, almofadaços, lambidas do cachorro, que fora junto, imagine. Chuva e chuva, percebida pelo suor das vidraças fechadas, barulho no zinco e uma ou outra goteira. E mosquitos, muitos, de todos os tamanhos e apetites. E choveu no outro dia, no outro, e até virmos embora de volta. Já não lembrava de um dia ter sido bem humorado.

Mesmo inchados por vários motivos, coubemos todos no fusca. A estrada era estreita, ruim e, por essas coisas da vida, todo mundo resolveu voltar ao mesmo tempo. Lá vínhamos nós. Dez, vinte km por hora era lucro. Eu naturalmente não ria. Apenas olhava fixo e incomunicável para a estrada sendo engolida pelas rodas do carro, quando este conseguia se mexer. Súbito, enguiçou o limpador do pára-brisa, bem no meio. “Não falta mais nada” – pensei. “Agora mesmo que este corno não anda”. Tive a impressão de que ele ouvia o meu silêncio, por isso não parou. O cara, no entanto, usava lentes grau sete para enxergar mal, e nada para o jeito que estava dirigindo: com a cabeça para fora, limpando os óculos com a mão. Paramos para pensar. Chuva e chuva. E veio a idéia. Amarraríamos um barbante no limpador, cada um de nós ficaria com uma das pontas e estudaríamos um sincronismo perfeito para movimentarmos o instrumento. A alternativa que tínhamos era uma fita, dessas de pacote de presente. Talvez houvesse outra, mas como procurar no meio daquela multidão? Blasfemando em função da dificuldade para enxergar, meu colega foi até a frente do carro amarrar o barbante. Voltou pingando, mas satisfeito, afinal tinha solucionado o problema. Testamos a sincronia, deu certo e reiniciamos. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai”- repetia eu entre dentes. Pelo menos estávamos indo, janelas abertas inundando tudo. Sabe cheiro de cachorro molhado? Até uns 100 metros adiante quando o laço desfiou e rebentou. E o limpador parou, de novo, bem no meio. Não lembro o que pensei, nem o que resmunguei, mas era sobre a mãe de algum dos presentes. Andamos mais um pouco e paramos num boteco, desses que vende tudo. Estava tão necessitado de liberdade e de algo que me tornasse a cabeça um pouco menor que mal chegando a frente do boteco saltei de carro, não dando a mínima para a perna que há muito já doía, e fui saltando até a casa. O bom homem tratou de arranjar o que lhe pedira. Tirou um barbante que enrolava não sei o quê e gentilmente me entregou. Saltei de volta. Um pé só, ensopado, rindo. De raiva. Amarrei o cordão no limpador e retomamos a viagem, agora sem ensaio. “Vai” – dizia ele, feliz. “Vai” – dizia eu como uma vontade louca de completar a frase com todas as indelicadezas que conhecia. Chuva e chuva, a perna doendo, e eu ali, olhos fixos na estrada sendo engolida pelas rodas do fusca, quando este conseguia se movimentar.

Anoitecia ligeiro. Engraçado, olhando pela janela não parecia tão escuro, olhando para frente já não víamos nada. Estava ficando impossível de continuar quando passei a mão no pára-brisa. Graxa, graxa pura. Lembrei que o tal barbante gentilmente cedido pelo bolicheiro estava amarrando lingüiças e salames, e trazia consigo toda gordura que conseguira absorver com a convivência. Era o caos. Sem recordar em que dia e em que circunstâncias rira com gosto pela última vez, retirei do fusca meus 1,85m e fui lá esfregar a Zero Hora de domingo inteira para retirar a gordura. Chuva e chuva e eu ensopado, ainda assim, melhor na chuva do que lá dentro. Aquele pára-brisa nunca mais seria o mesmo. Mas em algum momento aquelas lesmas, carro e motorista haveriam de atingir o ponto em que a estrada alargaria e talvez pudéssemos retomar os saudosos sessenta km por hora. E chegamos ao ponto. No exato momento em que pifaram as luzes do carro e a chuva parou. Quem estava na frente sumiu, quem estava atrás sumia na frente e todas as referências luminosas que indicavam o leito da estrada foram para o brejo. Dez, vinte, meu amigo míope pisava leve, não podia arriscar. Oito horas de purgatório, um fio de cabelo branco e alguns dentes gastos depois chegamos em casa. Nunca um JK pareceu tão espaçoso. Nunca o bafo de fevereiro em Porto Alegre foi tão refrescante.

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Sou advogado, tenho ótimo senso de humor. Eu e a Lú vivemos bem, somos felizes e temos uma filha. Fiquei momentaneamente tenso revivendo uma história ao receber um convite para ir à praia. Magistério é logo ali, diz a Lú. Eu não lembroi. Nunca mais fui lá.

jair portela
Enviado por jair portela em 12/12/2008
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