o explorador
Quando recebi a confirmação de que havia sido escolhido para integrar a equipe de Marrie London, como fotógrafo, tive uma das maiores alegrias de toda a minha vida.
Havia sete meses passados que eu tinha mandado meu pedido. Foi quando ouvi um programa na rádio Voz da América. Meu velho Motorádio me dera a oportunidade que sempre sonhara.
Não pudera fazer faculdade mas sempre gostei de arqueologia. Muito antes de Indiana Jones aparecer na televisão eu já estivera vivendo como um índio em uma aldeia no sul do Pará. Fiquei quase três anos vivendo e aprendendo com os Urientes, uma tribo descendente dos antigos Tapajós, cuja aldeia se localizava próximo da Serra do cachimbo, entre os rios Curua-Açu e o São Benedito. Com eles descobri muitos segredos sobre as frutas e os vegetais. Mas eu era apenas um curioso. O que guardei dessa convivência trago apenas na memória. Também, eu deveria ter na época 18 ou 17 anos. Naquela época jamais pensei sequer em levar uma máquina fotográfica para registrar, ou mesmo um diário, sei lá.... essas coisas que o pessoal costuma usar para registrar os bons momentos da vida.
Com eles aprendi o valor da liberdade, e da lei sem ser preciso ter lei escrita em parte alguma. Eram os últimos 27 Urientes. Eu nunca mais os vi. Faz alguns anos que faleceu o último da tribo. Fiquei sabendo pelos jornais.
Conheci alguma coisa dos seus costumes e rituais. A dança do casamento, a noite da Lua seca, os rituais para os enterros, o corte das plantas medicinais, a extração de raízes afrodisíacas e alucinógenas... e muitas outras coisas que relatei na carta que escrevi para a geóloga Francesa. Acho que isso foi um ponto a meu favor. O outro é que eu conhecia um pouco da lingua dos nativos da região e ainda por cima podia servir como fotógrafo da equipe.
Mas o fator decisivo foi que lhe disse que não precisava me pagar nada, desde que eu ficasse com os negativos das fotos que tirasse e pudesse fazer deles o uso que quisesse. A única ressalva foi que eu deveria sempre citar a equipe de exploração.
Tudo acertado rumei para o ponto de encontro na cidade de Tefé, no Amazonas, onde eles chegariam de avião. Tefé não era bem uma cidade. Na verdade um pequeno porto de exploradores e seringueiros, localizado a beira do rio Solimões, e mais um manancial de pequenos rios que ali deságuam.
Foi o ponto ideal que o guia da expedição escolheu para pegarmos as previsões e os carregadores da região.
Quando cheguei, depois de quase cinqüenta horas dirigindo em estrada de chão, cheias de lama e buracos que eu imaginava fossem criados por meteoritos dado o tamanho. O meu velho Willis 57 não agüentaria se eu não o tivesse reequipado com molas reforçadas e motor de scania além de ter feito levantamento dos eixos. Mas pouco me importava. Fora descartado pela arqueóloga Niede Guidon nas andanças dela pelo interior do Piauí, antes de descobrir o vale dos dinossauros no Parque da Capivara. Sim, ela não me quis por perto, pois eu não tinha a escolaridade mínima exigida que era o segundo grau. Bolas para o estudo, o Antônio Ermirio de Moraes se formou depois dos 40 anos, John Major 1º ministro Inglês sucessor de Margaret Tatcher, nem tinha curso superior, Einstein ganhou título de Doutor depois de já ter formulado sua descoberta, e muitos outros não precisaram de diploma para mostrarem o quanto sabiam.
Tefé me pareceu uma cidade indiana. Feiras livres em todo lado que se olhava. Em todas as ruas as pessoas passavam com alguma coisa para vender;; mulheres com frutas dentro de latas que tinham na cabeça; homens com caixas de isopor mostrando enormes e variados peixes; uns vendiam pássaros, outros tartarugas, ainda havia os que vendiam doces, cuias e outros mil objetos. Sabia que ali também havia o mercado negro de pássaros e animais em extinção.
O atracadouro era uma cais flutuante, feito de bambus e cipós. Parecia que de um momento para outro podia ir para dentro da água. Mas era mais forte que se pensava. Ficava próximo do aeroporto e divisei o pequeno barco que nos levaria até o primeiro contato em terra na região de matas fechadas.
Estavam na embarcação me esperando sete pessoas fora os carregadores. A tal de Marrie London usava um chapéu cáqui e um lenço amarrado na cabeça sobre os cabelos. Tinha um rosto branco e já meia avermelhado devido ao calor. Vestia uma camisa branca de mangas compridas que estavam arregaçadas. Ao seu lado direito um enorme alemão, usando uma bermuda cinza e umas meias que iam até acima do joelho. Calculei que ele deveria ter sido algum lutador de sumô em outra encarnação. Me perguntei se teria agilidade o suficiente para andar na mata, subir morros, desviar de pedras e cobras ao mesmo tempo. Agachado tirando alguma coisa de dentro de uma caixa uma moça de cabelos pretos levantou-se quando lhe falaram alguma coisa. Uma índia. Foi a primeira impressão que tive. Mas depois a medida que eu chegava mais perto pude ver que não era índia, tinha batom nos lábios e usava roupas demais. Era também a índia mais alta que eu já vira então, se fosse índia. Era a médica da equipe, e o Alemão era o técnico em botânica. Atrás dos três divisei aquele que seria nosso guia. Corpo atlético, perto de 1,75, pele curtida pelo sol, moreno e um pequeno bigode. Usava apenas uma bermuda e uma sandália á moda índia. Devia ser um mestiço, e realmente o era. Eu nunca confiei em mestiços. Aprendi isso com os Urientes, quando me contaram os ataques que seus ancestrais sofreram onde a maioria da tribo foi abatida. Um mestiço roubou e matou um homem na cidade e foi se esconder entre os Urientes e influenciou dois jovens a estuprarem uma moça das redondezas. Depois quando foi capturado entregou os dois jovens e disse que a tribo ainda praticava o canibalismo.
Marrie me abraçou e para minha surpresa falou em alto e bom português:
---- Então você é Francisco Souto!? Pensei que fosse mais velho!
Todos riram! Sinal que entendiam o português. Um bom sinal, por que meu Francês e inglês sempre foi um lixo.
---- Gente! venham conhecer nosso fotógrafo!
Aos poucos o pessoal foi se acercando e fui cumprimentando um a um.
---- Este é Joseph, nosso biólogo; esta é Marina, tua conterrânea, ela é a médica da equipe; --- eu ia apertando as mãos mecanicamente - Este é Ângelo, nosso guia e condutor- a mão deste era fria e o aperto sem força, mau sinal eu pensei - hei, saiam daí! Venham cá!
E logo mais duas pessoas apareceram de dentro da cabine do barco.
---- Este é Marcos, o operador de rádio e técnico em informática e esta é Cláudia a zoóloga da Unicamp.
---- Prazer! - disse eu a todos os apertos de mão que recebi.
Em pouco tempo, eu já tinha levado todo meu equipamento para dentro do barco.
Um dos meus acompanhantes da estrada, o pequeno Baku, não quis ficar para trás e não tive remédio senão levá-lo comigo. Dei-lhe o nome pelo barulho estranho que fazia Quando tinha alguma coisa na boca.
A zoóloga se apaixonou pelo meu mico. Achou-o diferente. Disse que devia ser produto de algum cruzamento. Eu não sabia. O encontrei no meio da mata quando parei para urinar. Ele entrou no jipe e não quis mais descer. Como era amistoso eu consenti que pegasse uma carona.
O guia me parecia um homem estranho. Apesar de ser mestiço e falar razoavelmente bem o português era de poucas palavras. Ficava a maior parte do tempo sozinho, olhando para o infinito, como a buscar alguma coisa que só ele podia ver. Mas quando Marrie precisava de sua ajuda era todo agilidade. Com rapidez e firmeza ordenava, ao que os outros, carregadores bugres, lhe obedeciam cegamente.
No segundo dia partimos de Tefé, depois de tudo pronto e de todos sabermos quem era quem e o que faríamos especificamente.
Para mim não foi um choque, já ouvira falar da expedição do capitão Fawcett, e sabia que existia a tal gruta de três cabeças, pois muitas vezes ouvia os anciões dos Urientes comentarem sobre o segredo que ela escondia.
Quando os bugres ouviram o guia pronunciar algo que soou como "mamocuçabe" notei alguns fazerem cara de mau grado, como se não tivessem gostado muito de ouvir tal coisa. Não era uma linguagem conhecida por mim. Não entendi o significado.
O barco andava devagar pelas águas calmas e profundas de pequenos rios que surgiam e desaguavam no Solimões. Em dado momento o guia apontou para uma reentrância onde havia uma largura maior e as águas pareciam mais claras. Atracou em uma vila chamada Uraini, onde o pessoal da aldeia nos recebeu muito bem. Eram moradores da mata. Havia ali brancos e índios. Viviam somente da caça e pesca. Tirei algumas fotos e cheguei a me assustar tal o modo como viviam. Existiam homens com aspectos primitivos e seus costumes não eram diferentes. Pais e filhas tinham filhos juntos, e a bigamia era coisa comum entre todas as velhas casas. A médica teve trabalho pois encontrou focos do besouro do barbeiro em várias casas.
Eu tirava fotos das várias peles de onça que havia penduradas nos varais e galhos das árvores. Alguns jovens da aldeia me levaram em gritaria até onde havia uma meia dúzia de cascatas. Eu nunca vira nada de beleza igual. Uma pequena escadaria, de água branca e borbulhante desafiava meus olhos e eu conseguia enxergar o fundo de um lago de quase dez metros de profundidade. Crianças brincavam dentro do lago, jogando água uma nas outras. Eu tirei várias fotos ali, me perdendo nas horas, tal a sensação gostosa que sentia. Algumas crianças subiam nos pés de manga que haviam no costado do lago.
Quando voltei até o porto onde o navio atracara todos já estavam prontos para voltarmos a navegar.
Ângelo, o guia, me repreendeu pois disse ele que por minha causa haviam demorado mais que o esperado e do jeito que íamos poderíamos passar a noite no meio da água e isso não era bom, pois era mais seguro estarmos em terra seca.
Eu notei que ele parecia realmente preocupado com isso. Mas não dei tanta importância. Os nativos desses lugares geralmente tem muitas crendices e lendas idiotas na cabeça.
Durante a noite os pernilongos começaram a incomodar e eu tive que instalar o mosquiteiro, e como não resolveu, levantei e comecei a passar um óleo que ainda conservava comigo desde os tempos de Uriente. Baku fez um barulho e rolou na pequena caixa de papelão que arrumei como sua cama.
Então ouvi ao longe um canto estranho. Era quase como um choro, um lamento.
Aquele barulho me lembrava quando ventava muito na cidade e do vão entre dois edifícios saia um som fino e longo.
Pé ante pé saí do quarto tomando cuidado de não acordar mais ninguém. Cheguei até a parte de cima e notei junto a amurada do convés, se é que é assim que se chamava aquela parte do barco, o guia. Ele estava sentado, com o dorso nu, olhando para o horizonte negro, onde não havia nada senão água e mais água. Suas pernas pendiam no vazio acima das águas.
---- Fotógrafo não consegue dormir!
Pela primeira vez ele me dirigia a palavra depois que me dera aquele raspa por ter atrasado a saída do barco.
Já estávamos a três dias juntos e era a primeira vez que tinha oportunidade de estar a sós com aquele homem que era um tanto quanto exótico, para não dizer estranho.
---- Ângelo, eu....
----- Psi.... - fez ele colocando os dedos sobre os lábios.- está ouvindo? - e esticou o pescoço como para ouvir melhor.
Eu prestei atenção e pude então ouvir novamente aquele som distante.
---- O que é isso? - perguntei parado ali, como se fosse prisioneiro de um encanto.
----- é o Uirapuru! Não é lindo!?
Eu concordei. Realmente era algo mágico, encantador.
----- você não está com sono? - perguntei a ele que ainda permanecia na mesma posição. Sentado com as pernas balançando no costado do barco.
----- Durmo depois. Bom ir para cama quando o sono está bem forte. Deita e dorme. Você acredita na história que Dona Marrie contou? – disse ele mudando de assunto.
----- Como assim? Que história está falando?
----- Você branco, mas diferente deles. Eu sinto. Não sei como acredita nessa coisa de Capitão Fawcett. Não viu que é tudo enganação?
----- como? Está me dizendo que a Doutora Marrie London não está indo atrás dos rastros do Capitão Fawcett? Ora, isso é tolice Ângelo.
Então ele, virou-se e rapidamente pulou ao meu lado. Cheguei a me assustar com a rapidez como fez isso.
---- Eles estão atrás do ouro!! É só o que interessa a eles! Marrie London está te enganando!
---- Ora, você está doido! - eu elevara minha voz e ele colocou então sua mão sobre minha boca.
---- Quando o vi chegar pensei que era um deles. Mas depois, lá em Uraini, junto do povo da terra percebi que era diferente. Não é igual eles, se mistura sem medo nem preconceito. Agradou as crianças e isso é importante. As crianças da terra não sabem ficar perto de gente ruim. Tem bom coração e espírito grande. Agora escuta, deixa eu falar.
Tirei sua mão da minha boca e sentei-me junto a ele na beira do barco.
---- Ví os mapas da cabine do comandante do barco. As rotas deles levam longe dentro da mata. Lugares pouco conhecidos. Tem aparelhos, coisa de computador e radar. Isso é muito estranho.
---- É estranho nada. Hoje em dia os arqueólogos usam tecnologia para executar o serviço com maior eficácia.
---- Não fala nada pra Dona Marrie. Mas eu acha bom você abrir os olhos.
---- Ok! Vou dormir e acho que você devia fazer o mesmo. Esqueça essas coisas de tramas e dramas. Isso não existe.
---- Vou Escutar Uirapuru! Depois eu dorme. Fotógrafo promete não contar nada pra Dona Marrie?
---- Tudo bem! Agora vou dormir....
Desci para o quarto e me estatelei na rede.
Acordei com gritos no convés. Abri os olhos e a luz forte do sol me cegou por instantes.
Um rebuliço e um trepidar de passos me dizia que algo de grave estava acontecendo.