Memórias de Maria Teresa - Mudanças
Mudanças de endereço são geralmente associadas a muito trabalho e estresse. Na prática, nem sempre é tão ruim assim. É que em uma tal ocasião, por incrível que pareça, pode-se encontrar peças valiosas para a montagem do quebra-cabeças da vida. Mexendo e remexendo papéis velhos, eis que Maria Teresa encontra o esboço de uma carta antiga, destinada a alguém a quem ela jamais vira pessoalmente, um namorado ideal... de fato, irreal.
- Será que cheguei realmente a enviar essa carta?! Por email, talvez...? - cogitava - Ah, não importa! - Eis que aqueles dias haviam sido muito confusos e a mente humana não é aparato confiável.
Na carta, estava escrito:
"Querido X,
Em primeiro lugar, gostaria de desculpar-me por não lhe ter dado a devida atenção nestas últimas semanas. Embora você possa pensar que não há justificativas para o meu súbito silêncio, o fato é que tenho estado muito ocupada ultimamente. Para ter uma idéia, tenho dormido sempre depois das 03:00 da madrugada, e sempre tenho que acordar por volta das 06:00 horas da manhã. Agora, por exemplo, são 02:30 da madrugada, tempo que encontrei para pensar em minha vida pessoal. Normalmente passo o dia fora de casa, e quando chego, já está muito tarde para ligar para você. Coincidentemente, todas as vezes em que você me ligou, estava também impossibilitada de lhe dedicar muito tempo. Bom, não estou inventando desculpas, é isso que quero deixar bem claro.
Por outro lado, confesso que esfriei um pouco, pois fui obrigada a avaliar nosso relacionamento de maneira realista, como procuro fazer, aliás, com todas as outras coisas em minha vida. Sou mesmo fria e metódica, e não posso fugir deste fato, nem tentar mudar meu jeito de ser e minha forma peculiar de ver a vida.
Você é uma pessoa muito, muito especial para mim. Por favor, acredite! Exatamente por isso, acho que devo deixá-lo seguir seu caminho. Não sou uma mulher que sonha, agora, em casar e ter filhos. Não sei lidar com relacionamentos. Não me agrada o fato de pensar que a felicidade de alguém possa depender de mim de alguma maneira. Não posso e não tenho o direito de enganá-lo. Jamais quis fazer isso.
Não existe ninguém em minha vida no momento e, sinceramente, desejo que continue assim até que eu tenha capacidade de conduzir minhas emoções, o que pode, aliás, nunca acontecer. Li em algum lugar, atribuído a Shakeaspere: "Mostre-me um homem que não seja guiado por suas paixões, e lhe direi: eis um homem sensato." Não sei se foi ele mesmo quem disse ou escreveu isso, mas o fato é que concordo plenamente. A paixão cega e pode desviar do caminho da razão.
Resolvi escrever, ao invés de falar pelo telefone, exatamente para não magoá-lo mais do que já possa ter feito. Você é um homem romântico, e isso é raro. É muito bom também. Espero que você não se feche por causa desse incidente. Abra seu coração para novas experiências, já que busca alguém especial em sua vida. Infelizmente, esta não parece ser minha vocação. Quero muito que você tente ficar bem (e tenho certeza de que ficará). É melhor que se magoe comigo agora, do que mais tarde, quando os danos poderiam ser muito maiores, o que eu não desejo em hipótese alguma. Não pense que o problema está em você. A vida é assim mesmo. Em relação a mim, existem coisas que não compreendo, mas tenho que aceitar.
Por favor, entenda que eu o quero muito bem. Vou entender perfeitamente se você decidir se afastar de uma vez de minha presença perniciosa. Eu jamais quis despertar esse sentimento em alguém. Certa vez, você me disse que seu único problema era gostar de mim. Não quero ser sua muleta, nem a de qualquer outra pessoa. Isso me deixa doente.
Exatamente por termos conversado anteriormente sobre o fato de você NÃO QUERER ser meu amigo, caso não pudéssemos ser namorados, vou me manter afastada.
Mais uma vez, quero DEIXAR BEM CLARO que isto não é culpa sua, mas INTEIRAMENTE MINHA. É conseqüência direta de minha forma fria de ver o mundo.
Se você ficar com raiva de mim, vou entender. Faço tudo isso para o seu próprio bem. É melhor cortar o mal pela raiz. Para mim não está sendo fácil lhe escrever esta carta dura; No entanto, é preferível escrever do que falar. Assim consigo organizar melhor as idéias e fazê-lo entender o que realmente quero dizer. Não sei lidar com emoções. Por favor, perdoe-me.
Essa é uma decisão totalmente minha. Meus amigos e minha família não têm nada com isto.
Maria Teresa.
P.S. : a única mentira, ao longo de todo esse tempo, foi eu ter lhe dito, da última vez em que me ligou, que estava tudo bem. Eu deveria ter tido coragem (também não tinha muito tempo disponível), para dizer-lhe como estava me sentindo infeliz por ter que nos trazer de volta à realidade. Desculpe a covardia."
- E eu pensava que o tempo havia me transformado no que sou. Na verdade, eu sempre fui assim! – exclamou, dobrando a carta recém lida e em seguida guardando-a na caixa onde se lia "recordações". A quantidade de bagulhos, ainda por separar, dava-lhe tempo suficiente para reorganizar as novas peças encontradas. A figura do quebra-cabeças, refletindo sua busca por auto-conhecimento, adquiria agora novas formas, uma nova perspectiva.
Nota da autora:
Embora uma coisa não tenha relação com a outra, ao final da narração deste episódio na vida de Maria Teresa, lembrei-me da tragédia da menina Eloá. O que será que leva alguém a pensar que tem o direito de "possuir" outra pessoa?
"If you love somebody, set them free." (Sting)