O sorriso de uma sombra
Eu continuo a mesma. Estou apenas um pouco maior e menos agitada. Já são tantos anos caminhando para lugar nenhum, sem sequer reconhecer quem me conduz, que já perdi a vontade de lutar contra essas algemas.
Eu levanto de manhã, bem cedo, afinal ''Deus ajuda a quem cedo madruga''. Saio ao nascer do Sol, sem comer nada , sem tomar banho, sem ouvir um ''bom dia''.
Vivo num mundo sem cores, onde a penumbra predomina e tudo é tão sem gosto quanto os sons do silêncio. Aliás, os poucos sons que ouço são do ronco dos carros e desse estômago morto de fome. Além, é claro, dos comentários maldosos sobre quem sempre me acompanha.
Já ouvi de tudo. Desde ''vagabundo'' até ''lá vai o João sem sombra''. Não pense que me incomodo, afinal, não estão falando diretamente de mim. Parece piada, mas o que sinto é um misto de pena e indignação pela situação que se repete a cada dia: o mesmo percurso, as mesmas árvores de descanso, os mesmos vira-latas correndo de nojo. É um cotidiano de impotência, de auto-flagelação; mas o que eu, sempre esquecida e fria, posso fazer para ajudá-lo? Como fazê-lo enxergar que existe um mundo gigantesco além das banalidades sombrias e da humilhação de catar os restos de entulho e lixo dos que deles querem distância? Como tirar-lhe aquele espontâneo sorriso (de desdém sobre tudo o que penso)? Ora, meu Deus, como dar cor à vida desse homem?
Eu não aceito essa submissão, esse conformismo otimista; mas o máximo que consigo é mostrar meu desespero ao fim do dia, quando a noite chega e apenas à luz de lâmpadas mal-acesas é que conservo minha presença naquele barraco.
No fim, tudo se apaga e me escondo dos olhos dele. O silêncio agora tem som, e mostra a felicidade de um pobre homem que consegue sorrir na simplicidade de sua vida miserável.
Como conviver? Ainda busco respostas, mas, por enquanto, me contentaria em sair na rua e ouvir: ''olha, lá vai a sombra sem João''.