MEU PRIMEIRO CONTATO COM DEUS


E como um andarilho, da rua e da vida, com a jovialidade dos meus quatorze anos, eu fui subindo rua acima. Não sabia por que andava àquelas bandas, não muito distante da minha casa. Por certo, devia ser o tédio do meu quarto e a ânsia natural em buscar novas vidas naquela pacata cidade em que cresci.

Ao passar pelo canteiro central daquela grande avenida, avistei, a caminhar apalpando as grossas paredes da Igreja de São Sebastião, um Frade Capuchinho, que depois soube do nome, por demais conhecido na cidade, como frei Higino. Ele era gordo e de uma idade bem avançada. Se não erro em meus cálculos devia abeirar-se aos noventa anos. Mas estava firme. Entrando, com dificuldade, dirigia-se ao cubículo de madeira situado ao canto da igreja, na sala ao lado do Santíssimo.

Resolvi entrar na igreja de São Sebastião. Não sei o que era, mas algo dentro de mim me impelia a entrar. Música sacra ao fundo, tocava bem baixinho. Alta que era a abóbada da igreja exibia fulgurante uma obra artística de bela visão. As pinturas contavam, tal à capela sistina, a história da salvação, mas com belos quadros em tinta à óleo de artistas da terra, com fortes traços e características regionais.

A penumbra, própria de igrejas interioranas, meio que vazia, apenas rugia, no silêncio profundo, um leve balbuciar de orações inintendíveis de uma senhora que, à frente da imagem do Sagrado Coração de Jesus, orava piamente. As luzes eram poucas e insistiam num convite à oração e meditação. Qualquer ruído no salão-mor da Igreja era ouvido como um eco a ressoar nitidamente aos tímpanos.

Toda aquela cena de completa interiorização, a refletir-se nas atitudes das poucas pessoas que entravam, persignavam-se, rezavam poucas orações, tocavam os pés dos santos e logo em seguida saíam para seus afazeres, fez-me comigo refletir sobre o significado de Deus e da religião para as pessoas e principalmente para mim.

E ali eu estava, sentado no fundo da igreja, a filosofar sobre o sentido de Deus, em minha vida e na vida dos outros. Lembrei-me das orações que minha mãe me ensinara. Conseguia repetir as palavras decoradas da “Ave Maria”. Lembrei-me também do “Pai Nosso” e do “Glória”. Tentei até repetir as palavras do “Credo”, mas não consegui. Buscava o sentido daquelas palavras recitadas. Era feito, só me lembrava mesmo, de completo, das três primeiras orações.

Nesses questionamentos de fé, no leito dos meus tenros quatorze anos, resolvi encarar a verdade desses ensinamentos que a cultura do meu mundo me passara, e que eu, simplesmente, aceitara sem maiores críticas.

- Quem é Deus?
- Quem sou Eu?
- Por que tudo isso?

E as respostas não vinham. Apesar daquele silêncio de doer, minha cabeça era só barulho, como uma britadeira a quebrar asfalto.

Não me contive; precisava buscar ajuda vez que bradavam tormentas aquelas perguntas sem resposta. Resolvi encarar aquele velhinho – o velho frade capuchinho que tinha vista lá de fora. Ele estava ali, sentado à disposição de quem chegasse para confessar as suas agruras. Tomei coragem e decidi lhe dirigir as minhas dúvidas.

Levantei de onde eu estava e segui para o confessionário. Senti um calafrio, pois nunca havia me confessado. Aliás, nem primeira comunhão eu tinha feito. Mas, era preciso uma primeira vez. E pensei comigo, se aquele velhinho não me tratasse bem, simplesmente me levantaria e sairia correndo e certamente nunca mais voltaria. O velho não me alcançaria, por certo.

Mas eis que no caminho ao confessionário, quando já ia me chegando, uma senhora pôs-se à frente e ajoelhou-se diante do frade a confessar-se. Então pensei que não fosse aquela a minha vez. Tentei desistir. Não consegui. Deveria esperar até que chegasse a minha hora para, mais que confessar, conversar sobre a minha inquietação.

Então chegou a minha vez. Ajoelhei-me – era o costume – e de dentro da cabine do confessionário, uma voz maviosa e suave ecoava palavras por mim nunca dantes ouvidas, cuja ternura copiava o som dos anjos:

- O que inquieta o coração de tão jovem moço, cuja alegria pra mim é poder ajudar?

Eu, que pensava ouvir daquele velhinho uma voz rouca, trêmula e sôfrega, fez-me quebrar o preconceito e ver que só o corpo envelhece, pois que a mente continua a palpitar a alegria da vida.

Fiz-lhe, portanto, as perguntas que me inquietavam; falei-lhe que não era feito de fé madura e consciente, conforme meus amigos que, à minha idade, até a crisma já haviam feito. Eu, contudo, pouco ia à missa, talvez uma vez por ano, no aniversário de algum parente. Atos de fé mais recorrentes eram os velórios, pra perder medo da morte. Mas confessava nada entender e nada responder. Não sabia por que tanto se senta, quanto se levanta; nem porque alguns rezam palavras ditas sempre da mesma maneira. Mas a pergunta maior, cuja inquietação me incomodava, era a de quem seria Deus.

O velho frade, de certo, percebeu o meu espírito atribulado naquelas questões. Não olvidou, portanto, de saber da minha vida, dos meus pais, da minha família. Foi gentil em trazer-me para o meu mundo, e esquecer um pouco a dureza daquelas questões tão ásperas de filosofia e teologia. Habilmente acomodou-me no meu universo de compreensão sensitiva. Na medida em que o velho frade me trazia de volta ao mundo da minha existência corriqueira, meu coração se embalava na tranqüilidade de uma respiração não mais ofegante como outrora.

Só então, quando me viu respirar pausadamente, ele adentrou nas questões que me fez vencer o medo e dirigir-me a ele. E então começou por mostrar o significado da existência de tudo o que existe. A começar pela minha família, pelas diversas coisas ao meu redor. Ele perguntou de qual pessoa eu mais gostava nesse mundo, ao que lhe respondi ser minha mãe. Pois foi de dentro do coração da minha mãe que aquele velho e sábio frade começou a me falar de Deus.

- Você sabia que Deus é um ser que não ocupa espaço?
- Sim, eu sei, Deus é Espírito! Responde confiante.
- Ora, se Deus não ocupa espaço, Ele pode estar onde quiser!
- É claro, Deus pode estar em todo lugar! Redargüi, mostrando o interesse.
- Se Deus pode estar em todo lugar, há um lugar que é o preferido por Deus. Você sabe qual é?
- Não!
- É o coração da mãe da gente!
- Mas e o coração do pai?
- Lá também Deus estará, se ele se parecer com o coração da mãe!
- E o que tem de especial no coração da mãe para ser a morada de Deus?
- Onde os pássaros querem morar?
- No ninho.
- Por quê?
- Porque tem conforto e proteção para seus filhotes.
- Muito bem! O coração de mãe é o melhor reduto de conforto e proteção para qualquer filho. Concorda?
- Sim. Mãe só quer isso mesmo pros filhos.
- Pois bem, Deus, que mora lá, no coração de todas as mães, é quem faz com que todos os filhos se sintam confortáveis e protegidos. Se o mundo é inóspito e perigoso, o abraço de mãe acalanta todo o pavor; se o mundo é cruel e violento, o carinho da mãe reconforta e protege contra qualquer desalinho.
- Ah, é por isso, que até mesmo os bandidos mais perigosos voltam-se pras mães quando estão em perigo!
- O coração da mãe não é um censor cruel, nem carrasco impiedoso que julga racionalmente os fatos. Não! No coração de mãe só cabe um sentimento: O amor!
- Então é por isso que Deus fez sua casa lá. Porque é lá que se encontra o Amor.
- Sim. Exatamente. Deus é amor! E só isso basta! Quem tem amor tem Deus, e quem tem Deus no coração tem amor.
- Mas só mais uma dúvida: Deus e Amor são a mesma coisa?
- O homem é aquilo que faz? Para Deus se pode aplicar essa mesma categoria de raciocínio? Se de Deus só vem Amor, então podemos dizer que Deus é Amor?
- Não sei. Não consigo compreender.
- Meu jovem rapaz, não se preocupe com isso. Ame e viverá em Deus. Pense apenas que tudo o que existe e que você conhece, Deus já sabia. Deus sempre soube o seu nome, mesmo antes de nascer. Antes de vir ao mundo, você passou pelo pensamento de Deus. Deus pensou em você!
- Puxa, nunca soube que era tão importante! Então, se ninguém pensar em mim; se minha professora não gostar de mim ou não tiver amigos na escola; se não tiver namorada; se for infeliz na minha família; se achar que nada dá certo pra mim... saberei que se estou vivo é porque Deus antes pensou em mim. Logo, basta-me que o SER mais importante tenha pensado em mim.
- Isso mesmo! Se você pensar assim, verá que a vida fica bem melhor quando se sabe que Deus está sempre disposto a amar você, pois Ele pensou em você para te criar. E não faria isso à toa, não é verdade? Deus não faz coisa à toa. Quem faz coisas à toa somos nós. Deus, não. Tudo o que Deus faz é perfeito. Deus sabe o que faz. Por tudo isso é que falamos que Deus é ONIPRESENTE, ONISCIENTE e ONIPOTENTE. Ele está em todo lugar; Ele tudo sabe; Ele tudo pode.
- Obrigado Frei por ter me explicado sobre Deus. Como é seu nome, Frei?
- Eu sou Frei Higino. Volte quando quiser e Deus te abençoe, meu rapaz!

Desde então, meu conceito de Deus nunca mais se desvencilhou do conceito amor. Em tudo o que faço ou vejo, procuro saber se existe amor. Se existe amor, então Deus ali estará.

Hoje sou advogado e no meu ofício procuro identificar quais as leis em que se pode ver o amor. Noutras, contudo, casuísticas que são, vê-se que andam bem distante de Deus. Refuto a todas as normas que visam atender interesses mesquinhos, egoístas, que apregoam práticas que atentam contra a vida, leis que desumanizam, que segregam e excluem pessoas. Deus é amor e amor é inclusão, é dignidade e respeito às diferenças. Deus é amor e amor é acolhimento, conforto e proteção, atitudes próprias do coração de mãe.

Roberto Dourado
Enviado por Roberto Dourado em 02/12/2008
Código do texto: T1314810
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