O velho e a montanha
Existe uma serra perto da minha cidade que se chama serra da Lousã e que possui algumas velhas aldeias abandonadas. Este é o breve relato minimamente ficcionado do meu encontro com elas
Conheci esse homem há tanto tempo que julgo uma eternidade, mas que na verdade foi apenas há alguns anos, o que me leva a pensar que isto de sermos mortais tem destas coisas: um acontecimento a tocar-nos duma determinada forma, possui logo a forma e feitio de pesar tanto dentro de nós que até parece que se passou à uma eternidade, quando na realidade foi apenas há algum tempo. Mas voltando ao essencial, àquelas duas presenças -encontrei-o, quando numa aventura de adolescência trepava a montanha mais perto de minha casa, de mochila às costas e jurando a todos os deuses para que o meu destino se fizesse presente o mais depressa possível, e nem de propósito, encontrei-o bem no meio do meu objectivo, com o sorriso condescendente de quem vê aventureiros das férias como eu e com a minha expressão de aflição todos os verões desde à eternidade que lá estava. E ele estava naquela aldeia semi-deserta desde o seu sempre, isto é, há setenta e tal anos. Ele era único de muitas maneiras, e para mim era-o por ser o último habitante daquela aldeia, por ser ele o responsável de não a intitularem vergonhosamente de deserta. E a história resumida daquele ermo conta-se em três penadas: aldeia serrana com trezentos, ou quatrocentos anos (ele próprio não sabia, sabia apenas que a sua família até a memória a perder de vista sempre lá morara) resistira com os seus habitantes ao isolamento, à quase ausência de estradas e quase de pessoas novas, um ror de anos fechados sobre si próprios, os habitantes desenvolveram aquilo que hoje chamamos uma “economia de subsistência”, tirando da montanha e das suas cercanias aquilo que a sua insularidade quase proibia de irem buscar à vila alguns quilómetros na planície mais abaixo, por caminhos pouco mais que impraticáveis. Por isso as novidades e as inovações do resto do mundo chegavam lá sempre atrasados, embora as pessoas mal notassem, ou disfarçassem a dor de estarem tão longe tão perto com a indiferença, e por isso as gentes desenvolveram uma cultura muito própria, embora marcas como a nacionalidade ou a religião praticamente fossem as mesmas do resto dum país de certa maneira também ele fechado ao resto do planeta. Resistiu, resistiram quase estoicamente (embora este tom épico seja dado por mim, um citadino e conhecedor marginal e algo mitificado da sua história) dizia eu, resistiu bravamente até que pelos idos sessenta dos século vinte as novidades duma vida melhor em terras estrangeiras precipitasse a sangria tantas e tantas vezes adiada-É certo que algumas vezes alguns serranos mais novos saíam para ir morar para a vila ou para as cidades mais distantes, é certo, mas eram sempre poucos e a aldeia sarava essas feridas com sangue novo ali nascido, mas quando esses anos sessenta chegaram, a torrente de saídas começou a ser irremediável, irreparável, até que ela foi ficando cada vez mais vazia, até que ela começou a assistir à derrocada das suas casas por lá terem ficado apenas velhos cujas forças escassas os impediam à desejada reconstrução, até que por fim eles foram morrendo, ou cedendo ao apelo dos seus filhos idos que os queriam perto deles. E foi assim que a aldeia praticamente morreu, só ficando aquele jovem e a mulher, que o tempo fez velhos, e cujo tempo fez morrer essa mulher, até restar apenas ele, a sua casa de pedra e as colmeias, também elas de pedra, que ele cuidava com enorme carinho, com o carinho dedicado por nós às coisas que amamos, à única coisa que nos resta. E o tempo de facto passou, e até se lembraram de pôr lá a eletricidade que faltava e de abrirem uma estrada que também faltava, talvez por causa dele, ou mais provavelmente pela novidade do turismo que começava a trepar a serra e a considerar aquilo que abandonaram como uma relíquia de tempos antigos. E entretanto a segunda metade do século além das saídas também trouxe o fogo á montanha, um fogo tantas e tantas vezes criminoso, motivado por razões económicas, mas que por motivos desconhecidos poupou sempre a aldeia e os seus arredores, pelo que esta continuou emoldurada na sua bela e única paisagem de um verde cada vez mais invejável e também única. O resto do país ardia, mas ela permanecia isolada, até neste tipo de desgraças, como se as chamas nada quisessem com aquela terra abandonada quase por deus.
Armado em nostálgico, recusei na subida a estrada, preferindo o caminho dos antigos habitantes (caminhos de cabras, como lhes chamavam, por só este tipo de animais as galgarem com alguma facilidade...) só não chegando à aldeia com uma valente dôr de costas, porque na altura era ainda bastante jovem e a vontade de conhecer aquelas paragens o maior incentivo para suportar o sofrimento momentâneo.
Convivi com aquele homem, com aquela espécie de relíquia viva alguns três dias, e foi ele que me contou o que aqui relato com algumas alterações de forma. Não o vejo a ele e ao seu monte há uns bons vinte anos, se calhar ele já morreu, deixando por fim a sua aldeia vazia, e a montanha (que sei que ardeu um destes verões), mas prefiro imaginar o verde ainda impoluto tal como o conheci, prefiro imaginá-lo a ele com o seu sorriso, com a sua prosa convidativa, ainda vivo, ainda à espera da vida das planícies e das cidades que enchia a sua aldeia, para provarem o seu mel e as suas histórias, prefiro imaginá-lo eterno ao
O velho e a montanha
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