Amnésia
– Não, não a conheço – falei, com decisão. Aquela mulher que à minha frente surgiu, enovelada numa roupa de bom gosto, trazia gestos econômicos, vagarosos, que numa hora preguiçosa qualquer, a passar pelos meus cabelos seus longos dedos, seria, quem sabe, a maravilha das maravilhas para acalentar o meu espírito irrequieto. Talvez uma mulher de muitos recursos, sábia em manipular homens sensíveis como eu, fáceis de ser ludibriados.
Tornei a falar ao meu interlocutor:
– Não a conheço...
– Analise com calma. Não há nada nela que o faça lembrar-se do passado? – perguntou-me aquele sujeito que se apresentou como Josias, dizendo-se meu amigo, pegando em minha mão como se me orientasse em meio ao mundo, e eu que nunca o tinha visto na vida.
– O passado não existe, o futuro sim – respondi lacônico e sem saber bem o que dizia.
– Pense, esforce-se – insistia o pobre homem, que parecia ser o intermediário entre mim e a mulher.
– Vamos voltar às reminiscências. Sairemos das sombras e conheceremos a verdade – falei com ar arrogante, inspirado pela petulância. Não devemos, jamais, rebaixar-nos para um desconhecido que tenta impor uma verdade que nos é impossível aceitar.
O homem prodígio fazia gestos variados, os dedos estralavam, parecia ansioso, como um cientista prestes a testar uma invenção – e eu seria a cobaia.
– Calculemos as datas. Sua idade: 40 anos. Ela tem 38. Dois anos apenas de diferença. Não se lembra mesmo? Tiveram filhos e você os amava muito. Sua paixão por eles era enorme.
A persistência dele era comovente; seus olhos, talvez marejados, convenciam. A mulher parecia satisfazer-se em nos olhar, recostada à parede, como se apoiada ali para que não caísse. O olhar inerte a perder-se no mundo de suas divagações, como se estivesse alheia a tudo o que estava acontecendo. No meu entendimento, ela pouco ou nada me dizia daquela áurea de sentimentos que enlaça os seres que amam. Sua face era a de um fantasma. Não trazia medo, mas era o próprio medo. Quem ela pensava estar enganando?
– Olhe essas fotos, não lhe parecem familiares?
O mediador novamente. Agora trazia fotos de garotos alegres a brincar num gramado de um verde que não parecia real. Era verde demais, como o sol a brilhar em demasia, semelhante à alegria estampada nos rostos de jovens saudáveis a se divertirem num domingo de manhã magnífico à beira de um desses riachos que povoam as redondezas. Um cão brincava com eles e eis que se localiza, em meio àqueles estranhos seres que teimavam em afirmar serem meus parentes próximos, nada mais nada menos do que... eu! Sim, eu mesmo. Mas não, não poderia ser. Sou solteiro, vivo sozinho. Ou me engano? Quem se engana afinal de contas?
– Onde estão eles agora? – perguntei, desafiadoramente.
Ele olhava para a mulher que mantinha a cabeça mais baixa ainda. Titubeava, sim, ele titubeava, parecia ter sido desvendado o falsário. Médico da família, hein! Sua fisionomia lembrava mais aqueles oportunistas que esperam a primeira ocasião para entrar em ação e conseguir algo à custa dos outros. Que quer com tudo isso? Onde estão meus filhos, se são realmente meus? Não vejo essa certeza estampada no rosto dos dois tratantes. Querem algo de mim? Mas não vejo nenhum sinal de quererem dinheiro, ou alguma participação nos lucros de alguma empresa.
– Eles morreram no acidente.
– Acidente? Primeiro tenta me impingir essa mulher que tem cara de tudo menos de minha mulher, sendo que nem casado sou, depois fala em filhos que nunca tive e agora vem me falar que eles morreram em um acidente!
Calei e respirei fundo. Ganhei fôlego e mais calmo concluí:
– Por favor, senhor, me deixe descansar. Eu não faço a mínima ideia do que você está dizendo. Não reconheço nesta mulher minha esposa e nem meus filhos nessa foto. Sinto muito.
A mulher destampou a chorar, dobrando-se com as mãos nos olhos, soluçava alto, em desespero. Retiraram-se. Ele, com a mão em volta de seu ombro, a empurrou levemente para fora da sala.
Sozinho, pus-me a pensar. Que loucura estava acontecendo? Esposa, filhos, aquela foto! Hoje fazem miséria com um computador e aquela foto pode muito bem ser uma montagem bem encomendada. Mas com que finalidade?
Consegui dormir um pouco após aquelas inesperadas visitas. Tive sonhos e os sonhos estavam recheados de fragmentos do dia longo que passei. Fui informado pelo médico que ficara em coma por muitos dias e agora recobrava a lucidez. Meu corpo, apesar de todo dolorido, não parecia o de alguém que acabou de se acidentar gravemente. “Teve muita sorte”, me dissera o médico que me atendera. Horas depois me veio o médico da família, “minha esposa”, filhos mortos, tudo muito estranho. Parecia não ter recobrado de todo meus sentidos; minha consciência não se revelava refeita.
Como dizia, sonhei. Os sonhos são metamorfoses que se aplacam em nossos espíritos e nos colocam em verdadeiros labirintos nos quais nos perdemos entre faces tridimensionais de seres nunca vistos, de lugares jamais habitados. Contudo, trazem em sua essência sensações do já vivido, sob outra ótica. Rostos juvenis lançados ao espaço por colisões de matérias indecifráveis; uma corrente de sangue a deslizar por uma calçada e eu a ser levado por ela. Gritos, mãos estendidas à procura de socorro. Me sufoquei com aquele sangue que não era meu, mas de outros. Consegui sair da correnteza. Um vulto se aproximava da minha carcaça estendida no asfalto. Olhei para o céu negro: era noite. Não distinguia seus traços, apenas via os dentes num sorriso prolongado de quem se regozijava com o espetáculo que acabara de presenciar.
“Quer ver seus filhos?” Não respondi. Ele notava meu desespero e a dificuldade em responder. “Venha, siga-me. Eles jazem aqui perto. Não tema, é muito pouco o que você tem para ver. Nada restou. Sofrerá na mesma proporção em que eles sofreram com sua recusa em admiti-los. Venha, não tema.” Levantei-me a muito custo. Apoiei os joelhos e com as mãos forcei todo o corpo e fiquei em pé. A sombra seguia à minha frente, mas eu pouco podia distinguir. Notei que parara perto de um monte de ferros retorcidos. Me abateu um estranho pavor, pressentindo que o que seria visto não me agradaria. Aproximei-me e fiquei a poucos metros de suas costas. Ele se afastou, num giro, colocando-se à minha direita, olhando para mim. A escuridão era total e seu rosto, imperceptível. Fez um gesto com o braço, me indicando os destroços. Olhei lentamente, preparando-me para o pior. Os corpos de dois garotos estavam se decompondo. Os rostos, em carne viva, traziam a pele pendurada, pele bem nutrida, de quem teve uma existência confortável. “Que horror, meu Deus!”, exclamei, fechando os olhos e implorando que aquela tortura acabasse. O sangue continuava a correr pelos meus pés. “Vê agora o que lhe dizia? Seus filhos morreram por sua culpa.” Voltei para a sombra e vi seu rosto: era o do médico da família.
Eu tentava reestruturar os pensamentos. Acordado, palavras vagavam na boleia de um caminhão cheio de frases: “No fim do mundo cairei em seus braços”. Mimeticamente, a memória se construía. Um baque seco, pneus a passar perto, como se voassem por conta própria; ferros, vidros, lataria se contorcendo num abraço apertado, nos apertando, nos sufocando, nos estrangulando cada milímetro dos ossos. Voltei a adormecer.
“No fim do mundo cairei...” Um pneu rodopiou na encruzilhada: um trabalho desmanchado. Acordei. Nova visita. Agora me chegava aos olhos uma empregada, dita por todos já antiga na casa. Seu nome? Não sabia.
– Alberto, essa é Antônia. A Tonha. Trabalha com vocês há anos. Veio vê-lo.
O médico da família continuava incansavelmente tentando recuperar minha memória.
– Vamos, meu rapaz, tente se recordar. Ela trabalhou com seus pais e depois da morte deles veio para sua casa.
Mais mortos. O sujeito era mesmo persistente. Tratava-me como se nada tivesse ocorrido, ou o que ocorrera fora coisa puramente familiar, de fácil esquecimento. Olhar ligeiro, de mim para Tonha, de Tonha para mim. Fiquei impassível, olhar de peixe morto pra tal da Tonha.
– Sinto muito, senhora –, falei, por fim, procurando ser amável. A senhora pode ter trabalhado com meus pais, meus avós, com todos meus antepassados, mas não me recordo do seu rosto.
A mulher deixou o quarto, jeito desconsolado, como se pedisse perdão por não ter ajudado em nada. Saiu ela, entrou “minha esposa”. Ela entrou e passou a me olhar mais detidamente. Olhava, pedindo clemência, mas mais decidida do que o dia anterior, ou semana passada (os dias se perdiam naquela sala em que nada mudava, apenas as visitas e a flor que trocavam de três em três dias num vaso na minha cabeceira).
Ela se aproximara.
– Sou sua esposa, Alberto.
Ela falava! E que bela voz, mas não de uma esposa. Esposa? Idiotice. Não sou homem de me casar. Sou avesso às prisões.
– Sou sua esposa e tivemos dois filhos que morreram num acidente. Você não pode ignorar isso. Ninguém ignora um horror desses!... – Vi que fazia força para não chorar ou fazia força para fingir que estava tentando chorar.
Filhos? Nem pensar. As crianças traduzem hoje o que fomos ontem. Não podia ser.
Entrou novo personagem. Moreno, cabelo preto, olhos negros ou castanhos, eu não podia distinguir com nitidez. Trazia traços que lembravam os meus.
– Esse é Lino, seu irmão.
– Irmão? Não tenho irmãos!
– Não seja teimoso. A verdade você descobrirá, cedo ou tarde, não importa que leve sua vida toda querendo negá-la.
Voz poderosa, de mulher segura de si, nada semelhante àquela que há poucos dias estava segurando-se à parede para não cair.
Ela saiu do seu canto recluso. Aproximou-se com passos firmes, decididos.
– Alberto, confie em mim.
As mãos em concha circundaram meu rosto de forma a não deixar que eu me virasse. Manteve-me firme, meus olhos semicerrados, não querendo encontrar os dela. Ela aproximou seu rosto do meu, decidida a pôr fim àquela agonia. Beijou-me como, talvez, nunca tivesse beijado alguém, ou – como se nunca tivesse me beijado?
Num semi-sono, fechei os olhos e vislumbrei algo inexplicável. Meus olhos, cuja visão precisasse de óculos para enxergar melhor e agora os possuindo, iam paulatinamente sofrendo mudanças, de um estágio a outro, e do estado de visibilidade, que era precário, passava à nitidez que só os lúcidos conseguem ver. Primeiro, da mulher que me observava em suspensão; depois, dos demais circunstantes que, na mesma expectativa, aguardavam algo extraordinário. A memória, sempre traiçoeira nos momentos mais difíceis, movia-se, em ritmos não retilíneos, mas em círculos, indo e voltando, refazendo-se e embaralhando-se novamente, tirando-me e jogando-me naquele sono perpétuo que até há pouco eu me encontrava.
A mulher, que tanto me observava, era minha esposa Marta, ou quase. E os pequenos? Num átimo se desenhou em minha mente uma bifurcação de momentos fragmentários, flashes que se alternavam entre a nitidez pura e simples do ser lúcido, e a escuridão na qual minhas recordações mais cruéis queriam permanecer ocultas. Um momento de embriaguez, um descuido fatal, uma tragédia eminente. Uma estrada sinuosa, um dia chuvoso, carro à deriva, asfalto deslizando, “estrada de sabão” como costumeiramente se diz. O carro escorregou suave mas decidido pela estrada escura, para se perder na noite total.
À frente, um caminhão, e o choque inevitável. Dois mortos e dois feridos. Os mortos: dois jovens de seus dez e quinze anos. Os feridos: os dois motoristas, eu, e o motorista do caminhão, que nada sofreu.
Sentei-me à cama, olhei a mulher que ficara trinta dias à minha cabeceira esperando por meu retorno, seja lá de onde estivesse, na mais completa inércia. Retomei a foto, olhei os garotos e voltei-me à mulher.
– E eles?
– Sim – os olhos vermelhos, bolsas sob a maquiagem borrada, as pálpebras inchadas.
Deitei-me novamente, para voltar à inércia inicial. Retomei o trajeto interrompido.
Passeio com os filhos, retorno à casa, uma pescaria bem realizada, um gole de cerveja à direção, pros filhos apenas refrigerantes. O início tranquilo e a colisão no caminho de volta. A mão bobeou, fraquejou, um vacilo, uma fração de segundos que valeria a vida vivida até então. A derrapagem e aquele enorme caminhão surgindo à frente vindo como se saísse do nada. Um monstro mecânico que surgiu da pouca visibilidade para engolir meu carro e minha gente. Os destroços, os gritos, o sangue. A pouca luz existente apaga-se de vez.
Mortos e vivos estão na mesma condição. Uma claridade depois de permanecer na escuridão por tanto tempo. Quanto? “Trinta dias”, diz um senhor todo de branco. Estou inutilizado, cravado em uma cama. O corpo em frangalhos parece deslocado, não me pertence. “Onde estou?”, pergunto ao homem de branco. “Está em um hospital. Sofreu um acidente.” Nada era lembrado, nada se podia dizer. Me vi só. Sou um indigente sem família. Talvez, se vier a morrer, o médico, que parece ser uma pessoa boa, cuidará com extremo zelo do meu corpo até que eu esteja pronto para o meu enterro. Minha consciência é um iceberg, que guarda em sua extremidade visível um pouco da certeza de que não tinha certeza de nada. “Seu nome?”, o senhor de branco a me questionar. “Não sei”, respondo com certa cautela. “Para que quer saber?” “Precisamos avisar sua família.” “Não tenho família.”
Recebo visitas. Um homem e uma mulher entram no quarto. O homem me olha com ar sorridente como se me conhecesse há muito e me pergunta:
– Conhece essa mulher?
– Não, não a conheço.