Manhã inspiradora

Manhã inspiradora. Assim Verena definiu seu estado de espírito. Acordou com uma estranha sensação e não sabia o que tinha desencadeado aquele bem estar. Estava vendo o mundo com outros olhos. A mesma visão que tivera ao sair do cineclube depois de assistir A Dupla Vida de Veronique. A primeira coisa que quis fazer foi compartilhar a sensação com alguém. Não só por contar, mas para ter um marco registrando o começo de algo que ela ainda não conseguia definir. Ligou o computador e viu que Alberto estava on line. Eles quase nunca se encontravam pela internet. Trabalhavam em horas distintas e quando finalmente um via o outro conectado, era inevitável parar tudo para conversar.

Verena não quis conversar pelo chat. Não teria suas frases cortadas por pensamentos e observações dele, não seria obrigada a interromper seu relato para comentar algo que ele dissesse. Pensou no chat como um arremedo de conversa, que não permitia de forma alguma o diálogo. Eram duas pessoas falando sozinha na maior parte do tempo. Essa era a questão. O tempo de cada um dos participantes não era o mesmo. Quando a conclusão de uma frase chegava, já era outro assunto. Se a conversa pelo chat fosse repetida em uma mesa de bar, seria absurdo. Todos falariam a metade do que queriam dizer, sendo interrompidos e retomando suas falas o tempo todo. As pessoas não se vendo, não podem receber os avisos corporais enviados pelo outro, indicando a conclusão ou a permissão de falar. Preferiu mandar um e-mail.

“Acordei diferente hoje. O curioso é que eu poderia estar falando contigo direto pela internet, mas prefiro que seja por e-mail. A resposta não é imediata, mas assim tenho mais tempo de traduzir o que estou sentindo. Hoje me dei conta que existe um espírito em mim com conhecimentos além dos meus, vontades além das minhas e certezas que ainda não tenho. Ele quer atender a chamados que eu estou ignorando há muito tempo. E foram vários chamados de uma busca que eu sempre começo e interrompo por um motivo ou outro. Não é por falta de convição. É mais medo de que uma coisa ganhe proporções além do que o meu hábito por ações medianas possa suportar. Não é assustador quando se começa fazer algo e não se pode simplesmente largar tudo? Quando uma coisa toma conta de um espaço antes confortavelmente vazio e exige toda a nossa energia e empenho na sua consolidação? Eu ainda não sei o que vai exigir meu empenho, mas algo vai mudar. E isso eu tenho certeza, porque não há o menor motivo para eu acordar inspirada e continuar a viver como estou hoje.”

Alberto recebeu o mail e ficou pensativo o dia todo. Mais uma vez via sua amiga Verena deixar um devaneio tomar conta de tudo. Ela já havia trocado de emprego várias vezes por conta desses momentos inspiradores. E não adiantava dizer nada. Tinha que esperar pelas atitudes rezando para que dessa vez dessem certo e estar pronto para oferecer o ombro quando ela novamente quebrasse a cara. Ele não era místico, mas tentou evitar ao máximo influenciar negativamente Verena. Passou vários dias pensando só em coisas boas e aguardando que ela lhe mandasse um novo e-mail, dizendo o que havia feito. Depois de algumas semanas, começou a ficar preocupado pela falta de notícias e irritado pensou que esse devia ser um dos passatempos favoritos dela.

Nos dias seguintes, enviou dezenas de e-mails. Não escrevia nada, apenas mandava perguntas como assunto. Abriu uma ONG? Adotou órfãos de guerra estrangeiros? Resolveu se filiar a algum partido revolucionário e está iniciando uma luta armada? Está liderando alguma cooperativa de trabalhadores? Não obteve resposta. Esperou mais alguns dias e então enviou mais um e-mail com a pergunta “Qual é a coisa de grandes proporções que exige seu empenho?”

Verena respondeu com enigmas. “Algo esperado e bem merecido. Escrevo quando tiver mais tempo.”

Alberto achou que a resposta tinha o tom dramático exato usado por ela sempre que queria ampliar os seus feitos ou seus problemas. Ela não contaria o que estava fazendo por medo da crítica.

- Por que ela não consegue viver como todo mundo? – perguntou-se em voz alta, chamando a atenção de seus colegas de escritório.

Mentalmente agradeceu aos céus por ter terminado o noivado com ela. Se tivessem se casado, sua vida seria uma interminável série de começos. Em seguida, temeu por sua atitude. Se tivessem casado, será que ela não seria diferente? Poderiam ter traçado objetivos juntos, teriam o que fazer com suas vidas. Despois desconsiderou. Eles jamais poderiam ter se casado.

No dia seguinte, recebeu outro e-mail de Verena. “Minhas manhãs são sempre inspiradoras. Não é maravilhoso quando a gente começa a fazer algo grande e consegue se adaptar a essa magnitude? Pela primeira vez começo algo que quero terminar. Ás vezes experimento o medo de desistir. Não é mais por mim. Queria que você vivesse assim também.”

A inversão o surpreendeu. Ele sempre quisera que ela tivesse a vida regrada como a dele. Que fizesse tudo certo e ficasse satisfeita. Mas agora não estava só satisfeita. Estava feliz, cheia de um contentamento quase infantil pelo que estava fazendo, fosse lá o que fosse. Em poucos minutos de reflexão ele abandonou a idéia de ser feliz com o que fazia. Tinha metas, objetivos. Só precisava trabalhar e esperar o retorno. Não pensaria mais em Verena e suas loucuras. Mas Verena parecia ter recuperado o tempo livre. Todos os dias mandava um e-mail para ele, dizendo que continuava feliz e que ele deveria experimentar. Alberto se sentiu afrontado. Se ela quisesse jogar a vida dela para cima e arriscar tudo por um momento de inspiração era um direito dela. Mas instigar nele a vontade de fazer o mesmo era quase criminoso. O que será que ela estava fazendo? A pergunta não saía de sua cabeça. Por mais que não quisese, se pegava em vários momentos pensando em Verena. Tentava unir a formação dela com alguma atividade que pudesse ser classificada como grande. Não encontrou. Depois, achou melhor fazer pontes com trabalhos menores. Afinal, ela não tinha nada e qualquer coisa quando não se tem nada pode ser grande. E invariavelmente pensava em si mesmo. Ele tinha o que tudo o que havia desejado. Um emprego seguro, um apartamento confortável. Não luxuoso, mas com o essencial para sua vida.

Os e-mails continuavam chegando. “Se você experimentasse a satisfação de fazer algo por você, pelo seu próprio prazer, tudo seria diferente.” Alberto abanou a cabeça negando qualquer possibilidade de fazer algo fora de seu planejamento, mas não pode deixar de pensar no que lhe dava prazer.

Naquela noite foi para um bar. Há tempos não bebia, mas precisava de algo forte. Depois da quarta dose de tequila, olhou para o palco e viu um sax encostado em uma parede. Sem pensar direito, foi até lá e começou a tocar. Quando percebeu que mantinha a atenção das pessoas, experimentou uma satisfação acima do que qualquer projeto bem sucedido na empresa poderia lhe dar. Passou a tocar naquele bar todas as noites. Receber por sua música era algo único.

No final de semana resolveu escrever um e-mail para Verena. “Aprecio o trabalho que está realizando. Não pare.”

Verena recebeu a mensagem e sorriu. Era o sinal que ela estava esperando para continuar o que vinha fazendo.

Desire Manville
Enviado por Desire Manville em 29/11/2008
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