O enjoo
A espera parecia durar horas.Já havia cruzado e descruzado as pernas, folheado revistas de fofoca, espiado o movimento da rua pela janela e ouvido de Edmundo o pedido de “calma” dezenas de vezes.
Finalmente, o doutor Mauro retornou ao consultório.Sentou-se de qualquer jeito, demonstrando uma ansiedade que não cabia a um profissional.Achava-se no direito de agir de tal maneira porque acompanhava a família há mais de duas décadas. Rompeu o envelope e segundos depois anunciou:
-Parabéns, D.Ieda! Parabéns Sr. Edmundo! A gravidez está confirmadíssima!
Começou a falar de exames de pré-natal, dos cuidados, mas a cabeça de Ieda girava. Estava completamente atônita com a novidade.Enquanto o médico ainda discursava, a gestante saiu correndo em direção ao banheiro.Tive uma crise violenta de enjoo.A primeira de muitas.
APOSENTADORIA
O casal não trocou palavra no trajeto de volta a casa.Enquanto o marido guiava, Ieda cabisbaixa, enxugava as gotículas de suor que apareciam em sua testa com um lencinho bordado.E pensava:
-Mas justo agora!
Ieda já estava aposentada havia mais de oito meses e dentro de poucos outros, o marido também estaria.Houve festa na repartição no último dia de trabalho da funcionária:
-Eita que agora é que você vai curtir a vida, mulher!
Sonhara com um cruzeiro marítimo pela costa brasileira desde mocinha.Quisera que a lua-de-mel tivesse sido assim, mas as condições financeiras do casal na época não permitiram a ousadia. Engavetou o sonho junto com os cartões postais dos roteiros que desejava um dia fazer.
Logo vieram os filhos: Ariel e Leilane. Orgulho foi vê-los ingressando numa universidade pública e seguindo suas vidas acadêmicas em repúblicas estudantis.
Quando o casal se viu sozinho, sem filhos e praticamente aposentados, decidiu que era a hora de retomar o antigo sonho que, naquela altura da vida, já era de ambos.
ENJOOS
Uma gravidez depois dos quarenta anos exigia cuidados para lá de especiais: repouso, dieta balanceada, vitaminas.Porém, o que mais incomodava mãe tardia eram os enjoos intermitentes: um cheiro, uma lembrança, uma imagem, uma música, qualquer coisa era motivo para desencadear náuseas e vômitos.Por isso, não faltavam na casa caixas e caixas de Dramin.
-Este enjoo é minha sina! - contorcia-se.
AMOR DE OBRIGAÇÃO
As compras para o enxoval do bebê não contaram com a devoção do casal.Fizeram-nas porque era preciso.A sorte é que ganharam muita coisa.
O fato é que o casal, embora nunca tivesse confidenciado um ao outro, via no filho vindouro a frustração da aposentadoria tranquila.
-Essa criança é muito abençoada, vizinha! Que outra pode contar com o tempo total dos pais, afeição e estabilidade financeira?
Comentários como este só faziam aumentar a angústia de Edmundo e os enjoos de Ieda.A pobre mulher esforçava-se para gostar aquela criaturinha que ainda nem havia nascido, porque sabia que uma mãe devia amar o seu filho.
O NASCIMENTO
Estava assistindo ao noticiário quando a bolsa estourou.Como um carneirinho que se rende ao sacrifício foi-se Ieda a caminho da maternidade.
-Menina, é uma linda menina, D.Ieda.E como é que vai se chamar? –perguntou animadamente o obstetra.
A mulher sentiu uma ânsia, dessas que tem origem na dor, na vergonha, consequência de não ter escolhido durante os sete meses e meio nome para a sua filha recém-nascida. Quando se sentia assim, lançava mão de um Dramim e o engolia a seco. Balbuciou quase sem querer:
-Dramim.......Dramina! Isso, o nome dela será Dramina,- disfarçou.
A equipe médica entreolhou-se, mas nada comentou.O nome da criança era de uma bizarrice sem igual.
A FUGA
Uma madrugada, meses depois do nascimento da filha, Ieda sai da cama, ganhou o corredor e apanhou a mala escondida no quintal.Desapareceu na escuridão, onde um táxi a esperava.Não olhou para trás nenhuma vez
Quando pisou no navio, o dia já estava claro.Ieda pôde ver a magnitude de seu sonho bem ali, diante de seus olhos de quarenta e sete anos.
A VIAGEM
Tudo parecia perfeito: o mar, a paisagem, as atrações do navio, o clima, se não fosse por um detalhe: os terríveis enjoos haviam reaparecido.Jamais atinou que pudesse ter alguma espécie de mal-estar em sua viagem dos sonhos.Seria piada?
Castigo? Não importava! A cada enjoo, um comprimido de Dramim.Mas desta vez, a maldita pílula não fazia efeito. Talvez Dramina fosse a cura para todos seus medos, seus anseios, seus sintomas físicos.Dramina era terra-firme.
-O que não tem remédio, remediado está!- concluiu com um suspiro.
Sabia que estava fadada a um longo passeio nauseante.
Maria Fernandes Shu -28 de novembro de 2008
A espera parecia durar horas.Já havia cruzado e descruzado as pernas, folheado revistas de fofoca, espiado o movimento da rua pela janela e ouvido de Edmundo o pedido de “calma” dezenas de vezes.
Finalmente, o doutor Mauro retornou ao consultório.Sentou-se de qualquer jeito, demonstrando uma ansiedade que não cabia a um profissional.Achava-se no direito de agir de tal maneira porque acompanhava a família há mais de duas décadas. Rompeu o envelope e segundos depois anunciou:
-Parabéns, D.Ieda! Parabéns Sr. Edmundo! A gravidez está confirmadíssima!
Começou a falar de exames de pré-natal, dos cuidados, mas a cabeça de Ieda girava. Estava completamente atônita com a novidade.Enquanto o médico ainda discursava, a gestante saiu correndo em direção ao banheiro.Tive uma crise violenta de enjoo.A primeira de muitas.
APOSENTADORIA
O casal não trocou palavra no trajeto de volta a casa.Enquanto o marido guiava, Ieda cabisbaixa, enxugava as gotículas de suor que apareciam em sua testa com um lencinho bordado.E pensava:
-Mas justo agora!
Ieda já estava aposentada havia mais de oito meses e dentro de poucos outros, o marido também estaria.Houve festa na repartição no último dia de trabalho da funcionária:
-Eita que agora é que você vai curtir a vida, mulher!
Sonhara com um cruzeiro marítimo pela costa brasileira desde mocinha.Quisera que a lua-de-mel tivesse sido assim, mas as condições financeiras do casal na época não permitiram a ousadia. Engavetou o sonho junto com os cartões postais dos roteiros que desejava um dia fazer.
Logo vieram os filhos: Ariel e Leilane. Orgulho foi vê-los ingressando numa universidade pública e seguindo suas vidas acadêmicas em repúblicas estudantis.
Quando o casal se viu sozinho, sem filhos e praticamente aposentados, decidiu que era a hora de retomar o antigo sonho que, naquela altura da vida, já era de ambos.
ENJOOS
Uma gravidez depois dos quarenta anos exigia cuidados para lá de especiais: repouso, dieta balanceada, vitaminas.Porém, o que mais incomodava mãe tardia eram os enjoos intermitentes: um cheiro, uma lembrança, uma imagem, uma música, qualquer coisa era motivo para desencadear náuseas e vômitos.Por isso, não faltavam na casa caixas e caixas de Dramin.
-Este enjoo é minha sina! - contorcia-se.
AMOR DE OBRIGAÇÃO
As compras para o enxoval do bebê não contaram com a devoção do casal.Fizeram-nas porque era preciso.A sorte é que ganharam muita coisa.
O fato é que o casal, embora nunca tivesse confidenciado um ao outro, via no filho vindouro a frustração da aposentadoria tranquila.
-Essa criança é muito abençoada, vizinha! Que outra pode contar com o tempo total dos pais, afeição e estabilidade financeira?
Comentários como este só faziam aumentar a angústia de Edmundo e os enjoos de Ieda.A pobre mulher esforçava-se para gostar aquela criaturinha que ainda nem havia nascido, porque sabia que uma mãe devia amar o seu filho.
O NASCIMENTO
Estava assistindo ao noticiário quando a bolsa estourou.Como um carneirinho que se rende ao sacrifício foi-se Ieda a caminho da maternidade.
-Menina, é uma linda menina, D.Ieda.E como é que vai se chamar? –perguntou animadamente o obstetra.
A mulher sentiu uma ânsia, dessas que tem origem na dor, na vergonha, consequência de não ter escolhido durante os sete meses e meio nome para a sua filha recém-nascida. Quando se sentia assim, lançava mão de um Dramim e o engolia a seco. Balbuciou quase sem querer:
-Dramim.......Dramina! Isso, o nome dela será Dramina,- disfarçou.
A equipe médica entreolhou-se, mas nada comentou.O nome da criança era de uma bizarrice sem igual.
A FUGA
Uma madrugada, meses depois do nascimento da filha, Ieda sai da cama, ganhou o corredor e apanhou a mala escondida no quintal.Desapareceu na escuridão, onde um táxi a esperava.Não olhou para trás nenhuma vez
Quando pisou no navio, o dia já estava claro.Ieda pôde ver a magnitude de seu sonho bem ali, diante de seus olhos de quarenta e sete anos.
A VIAGEM
Tudo parecia perfeito: o mar, a paisagem, as atrações do navio, o clima, se não fosse por um detalhe: os terríveis enjoos haviam reaparecido.Jamais atinou que pudesse ter alguma espécie de mal-estar em sua viagem dos sonhos.Seria piada?
Castigo? Não importava! A cada enjoo, um comprimido de Dramim.Mas desta vez, a maldita pílula não fazia efeito. Talvez Dramina fosse a cura para todos seus medos, seus anseios, seus sintomas físicos.Dramina era terra-firme.
-O que não tem remédio, remediado está!- concluiu com um suspiro.
Sabia que estava fadada a um longo passeio nauseante.
Maria Fernandes Shu -28 de novembro de 2008