Marcas que o Tempo não Apaga IV - Violência contra a Mulher

Ela estava decidida a retornar para casa quando sentiu um toque em seu ombro, e voltando sua face deparou-se com uma senhora de branco, parecendo um anjo com seu olhar sereno em meio a tanta desgraça e dor:

- Você gostaria de sentar-se um pouco comigo e tomar um chá ou um café? Seria uma boa maneira de iniciarmos uma conversa, o que acha?

- Oh, não! Eu já estava de saída!- respondeu nervosamente.

- Imagino que deva estar preocupada com seus filhos, de certo os deixou com alguém e em segurança...

- Sim, estão seguros... - respondia tentando desviar o olhar.

- Já que é assim, que tal aceitar meu convite e conversarmos um pouco para que possa voltar para casa mais tranqüila para seus filhos? Eles também devem estar preocupados...

- É... Por isso tenho pressa... Olha, agradeço muito! Mas eu nem deveria estar aqui! Olhe pra mim, estou bem! Creio que exagerei! Não fui machucada, não tenho nenhuma lesão aparente, isso vai passar!

Colocando novamente a mão em seu ombro, aquela mulher olhou-lhe com tamanha ternura e com uma voz tão mansa que conseguia ser tranqüilizador:

- Eu entendo... Mas há um registro de ocorrência e minha função é me certificar que você esteja realmente bem! Não vai demorar nada, e garanto que assim que terminar irá se sentir muito melhor - terminou com um sorriso discreto.

- Está bem...Já que é rápido... Assim eu me sento um pouco antes de seguir para casa, moro longe daqui... Já é bem tarde...

Sorrindo, guiou-a até uma sala onde lhe puxou uma cadeira como um convite a sentar-se, e logo em seguida preparou-lhe um chá que lhe entregou com o cuidado devido para que ela não se queimasse ou derramasse. Sentou-se diante de uma mesa repleta de papéis, colocou os cotovelos sobre a mesma entrelaçando os dedos:

- Não se engane ao pensar que não está machucada só porque não há nenhuma lesão visível em seu corpo, embora eu possa enxergar bem que essa marca roxa em seu antebraço se deva a uma mão que a segurou com força extrema...

Olhou o braço e logo respondeu:

- Sim, foi... Mas nem está doendo! Isso logo desaparece...- ainda tentando desviar o olhar.

- Eu a observei quando chegou, não pude deixar de notar. Na maioria dos casos, as mulheres chegam aqui irreconhecíveis, o que não é seu caso. Mas, a experiência de longa data nestes casos, me permite enxergar as lesões internas que jamais irão cicatrizar.

Com os olhos arregalados e marejados, ela tentou esconder a emoção que emergia de dentro...Não pode e se pos a chorar copiosamente. Aquela mulher de branco apenas observava pacientemente, demonstrando com o olhar que todo aquele choro era necessário e respeitaria aquele momento o tempo que fosse. E alguns longos minutos se passaram...

- Estamos aptos a afirmar que o que ocorreu esta noite irá se repetir a não ser que seu companheiro passe por algum tratamento psicológico ou de reabilitação. Você pode compreender o que ele ainda não pode: o problema está nele não em você.

- Eu não sei o que fazer... Meus filhos não merecem isso!- reprimia o grito em prantos.

- Se sair por aquela porta, irá retornar aos seus filhos e ao seu companheiro, irão deixar que o tempo acalme a situação, irão fingir que nada aconteceu, e ele irá se mostrar mudado e arrependido. Até certo ponto o arrependimento é sincero. Mas quando há a presença de um vício na vida do indivíduo, arrependimento não basta.

- Não quero fazer nenhum mal a ele! Ele é o pai de meus filhos!Mas confesso que não é a primeira vez, mas ele nunca partiu pra cima de mim com tanta fúria!

- Cada vez que ele perder o controle e o vício controlar o momento de descontrole, ele se mostrará mais violento! Cada vez que desistir de tomar uma decisão quanto a isso, você e seus filhos sofrerão muito mais. Há muitos casos que as vítimas vão deixando que a tolerância faça algo, e o desfecho é trágico! Vê todas essas mulheres ali fora? Muitas delas estão aqui pela quinta, sexta vez... E fica por isso mesmo! Você não precisa chegar na mesma situação que elas se encontram, podendo fazer algo para evitar o pior agora.

Aquela senhora foi lhe oferecendo opções de como proceder e os benefícios que isso traria ao seu marido.O chão abria-se debaixo de seus pés... Ela estava vivendo com um inimigo há anos e não tinha se dado conta. Nunca havia percebido um processo de autodestruição bem ali a sua frente todos os dias. Ouvia atentamente, sentindo-se cada vez mais convencida de que poderia ambos estar em paz, não precisando necessariamente que continuassem a viver junto. Viver desse modo acaba por matar aos poucos quase todos os sentimentos bons que se pode ter por alguém...

De repente, aquela mulher simples de lábios inchados que se mostrava decidida a tomar providências e acabar com sua tortura diária surge na porta:

- 'Dotora'...

Ali na sua frente, como que uma pluma que paira, aquela mulher foi caindo lentamente até chegar ao chão. A senhora de branco correu ao seu encontro como se quisesse impedir o choque da queda... Tocou seu pescoço, deitou sua cabeça de lado sobre o peito sem reação alguma, levantou-se e olhou por uns instantes. Foi ao telefone e chamou por alguém enquanto as outras mulheres do lado de fora se aglomeravam na porta aos prantos como se conhecessem intimamente aquilo que sobrou de uma mulher.

A senhora de branco a olhou, e seu olhar repetia: "- Você não precisa chegar a esse ponto!"

>>FIM<<

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Em setembro de 2004 o Instituto Patrícia Galvão encomendou ao Ibope uma pesquisa inédita sobre a violência contra à mulher com dados impressionantes.

"Foram realizadas 2.002 entrevistas pessoais em todos os estados brasileiros, capitais e regiões metropolitanas. Cidades menores foram selecionadas probabilisticamente, dentro da proporcionalidade por tamanho de município. A margem de erro máximo, para o total da amostra, é de 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos. O intervalo de confiança estimado é de 95%."

Destaco aqui quatro dos resultados que apontam o progresso da violência doméstica contra a mulher:

. A idéia de que a mulher deve agüentar agressões em nome da estabilidade familiar é claramente rejeitada pelos entrevistados (86%), assim como o chavão em relação ao agressor, “ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele”, que é rejeitado por 80% dos entrevistados.

. Com relação ao chavão conformista “ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele”, há diferenças significativas e culturalmente relevantes: as mulheres (83%) tendem a rejeitar mais do que os homens (76%); os mais jovens (83%) mais do que os mais velhos (68%).

. Homens e mulheres fazem o mesmo diagnóstico: 81% dos entrevistados apontam o uso de bebidas como o fator que mais provoca violência contra a mulher; em segundo lugar, mencionadas por 63% dos entrevistados, vêm as situações de ciúmes em relação à companheira ou mulher.

. Menos importantes, mas citadas por três em cada dez entrevistados, vêm as questões econômicas: desemprego (37%) e problemas com dinheiro (31%). 13% citam a eventualidade de falta de comida em casa e 14%, dificuldade no trabalho.

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Para ler a pesquisa completa e ter acesso a outras informações sobre a violência contra a mulher, acesse o site :

PORTAL VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

http://www.violenciamulher.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/index.shtml