MINHA BICICLETA
Era um sonho de consumo. O desejo inarredável de querer andar sobre as duas rodas, talvez quisesse bancar o equilibrista, talvez quisesse saber qual a natureza excêntrica do equilíbrio.
Independente do que desejara. A bicicleta sempre representou em minha vida a parte incompleta do que sou, a outra metade de meu universo, a estrela pungente ao lado do sol. Afinal havia passado apenas cinco anos de minha existência tão ínfima até ali.
No universo de uma criança, um brinquedo tem vida própria, vontades, paixões, tal como um ser humano, ele fala e as crianças ouvem. Desse modo, sem ela, é como se faltasse uma amiga única que viajou já há bastante tempo e não voltou nunca mais, deixando apenas uma voraz saudade.
Aos seis, um piedoso cristão resolveu ajudar-me, meu pai surge como um herói, em pleno dia de meu aniversário, uma bicicleta posta nos ombros. Ele ostentava ali o sentido de meu viver, com toda imponência que se pudesse imaginar. Os olhos começaram a arder, a vontade incontrolável de chorar, as pernas bambas, o fôlego reduzido, a emoção quisera se espalhar sobre mim e conseguiu.
Ao pô-la no chão, pediu com olhar paterno para sentar-me no selim. Seguraria o guidom até que eu parecesse equilibrado. Ao ser solto, fui desajeitado em direção à parede, ceguei de medo: irei bater, quebrar o meu sonho ao meio, não só o sonho como todo meu corpo, não restará nada além de dor.
Não foi diferente, bati e caí sobre as pedras. Foi a primeira queda substancial de minha vida, não parecia ser de tamanha relevância, mas para mim, naquele momento frustrado, compreendi que viver significa vez por outra cair. Ainda no chão caído, questionei-me muitas coisas. Dentre as quais: por que ser um ciclista se é impossível equilibrar-se em duas rodas?
Não sabia que todos os viventes são ciclistas ainda que sem as rodas. Existir significa manter o equilíbrio entre os opostos que nos caracterizam: bem e mal, comer ou ficar faminto, ir ou vir, escolher ou não escolher, dizer ou calar, andar ou correr, sonhar ou realizar, viver ou morrer.
Se eu soubesse que minha primeira queda seria a mais leve de todas as outras que a vida teria a me oferecer, ficaria ali, andando em círculos, caindo e levantando. Já que nessa queda ciclística, não demoraria dez ou quinze segundos e já estaria de pé. Já houve casos de passar meses numa mesma queda, sem poder levantar-me.
Hoje, compreendo que o soltar de mãos de meu pai representou mais do que ande sozinho, significou, sobretudo “arrisque-se”, pois o termo “vida” é sinônimo de riscos, de aventuras, crenças, sonhos, amor, paixões, esperança. Naquela época de minha infância, a queda não me apresentara dores na alma, sacrifício diário, amor não correspondido, sonhos frustrados, injustiças, falta de humanidade, degradação de valores éticos, enfim, a bicicleta não me dissera ali que o martírio é viver dia-a-dia procurando a finalidade de existir.
Resta-me apenas uma alternativa: pedalar. Continuar o movimento, não de modo inerte. Hora acelerando e hora apenas reduzindo e enquanto isso o coração pulsa, pulsa, pulsa, a fim de que eu chegue ao ponto de partida e a vida volte a sua natureza incorpórea.
(Danilo Floriano)