Marcas que o Tempo não Apaga I - Violência contra a Mulher

Ela sentiu-se no local errado ao ver os corredores lotados de mulheres com faces deformadas: umas pelo choro intenso... Outras pelas lesões conseqüentes das agressões sofridas. Ela caminhava lentamente, sem conseguir esconder a surpresa em ver tantas mulheres visivelmente abaladas e machucadas. Apertava a bolsa embaixo do braço direito e com a mão esquerda como se pudesse fugir ou cair, com a cabeça encolhida e olhar assustado.

Aqueles olhares perdidos, e as lágrimas que escorriam pela roxidão inchada em suas faces faziam-lhe tocar a própria face e cair em si. Não, ela não se encontrava no mesmo estado que as demais. Além da marca escura em seu antebraço, e sentindo o corpo dolorido pelos empurrões, as lesões estavam por dentro no coração partido e na alma em prantos.

Quando moça, acreditava em contos de fadas como sonhos que se transformam em realidade. Acreditava em almas gêmeas e esperava que sua metade um dia surgisse. Se metade dela e se o dualismo estava em tudo, supôs que sua metade era seu oposto. Era bonita e meiga, tinha ternura encantadora no olhar e seus movimentos era graciosos. Um sorriso tímido deixava seu rosto muito mais radiante. Falava pouco, escutava muito: era muito boa ouvinte.

Um dia, de uma maneira estúpida conheceu o que seria estar nos braços de um homem... Havia acabado de completar seus dezoito anos e jamais poderia imaginar que aquele homem lhe fizesse tamanho mal. Com o cano de uma arma na boca, entre paredes e casas que jamais tinha visto, sentia o hálito e a pressão que lhe rasgava por dentro. Ela só pensava em sua mãe que deveria estar preocupada com sua demora em retornar para casa. Pedia perdão em pensamentos por não conseguir manter sua pureza para o tão esperado príncipe encantado. Quando tudo acabou, tentava pegar o que lhe sobrou das roupas, sentindo uma dor intensa entre as pernas a cada passo que tentava dar.

Carregou essa dor consigo por todos aqueles anos... Procurou não dar espaço a nenhum trauma, ou fingia que nada havia lhe acontecido. Quando as lembranças de sua primeira vez vinham à tona, ela reagia do mesmo modo que naquela noite: fingia que sua alma saia do corpo e seguia voando para um vale verdejante repleto de árvores frondosas que acolhiam pássaros canoros que criavam uma música para que ela dançasse entre as alfazemas. Quando jovem, sua mudez se dava pela timidez. Já adulta, se dava pelos constantes vôos em terras que apenas ela podia chegar.

Poucos anos depois reencontrou um lindo jovem que fez seus olhos brilharem. Perdeu o fôlego por alguns instantes e se deu conta que aquele era demais pra ela, que se considerava tão comum. Mas ele a notou, a procurou e a desejou. Desejou, como desejou todas as outras que passaram pelo caminho dele... Mas é que havia algo diferente nela. Foram se conhecendo aos poucos e descobriram que já haviam se cruzado pela vida várias vezes desde a infância. Para ela era um sinal: era ele seu oposto e seu príncipe encantado.Ela o conhecia cada vez mais como a palma de sua mão... Ela o estudava cada vez mais para descobrir sem perguntas o que lhe agradava. Ela tentava ser cada dia melhor, não bastando toda a diferença que ele havia percebido nela. Transformou seus defeitos em virtudes, e assim aprendeu que defeitos não são de todo mal... Namoraram alguns anos, brigaram algumas vezes, terminaram outras vezes, e faziam as pazes sempre. E um dia casaram-se, tiveram filhos, mas não foram felizes para sempre.

Tudo tem um tempo certo para acontecer... Aquele não era o tempo dele... Ele interrompeu os processos de amadurecimento que a vida proporciona e se perdeu em si mesmo. E há situações que acontecem no tempo certo e essas vieram... E ele não estava preparado para encará-las. Havia dentro dele questões não resolvidas, traumas, mágoas, bloqueios... Ele escondia tudo isso no profundo do seu íntimo, e demonstrava superficialmente uma falsa segurança e uma postura de superioridade que ele sabia não ter. Mas o tempo certo de tudo desvenda os mistérios e torna visível o que esta oculto, nem que seja para nós mesmos.

Ele não suportou os obstáculos que lhe sobreveio quando se encontrou só. Ele sentia-se sozinho e desamparado e ela sempre soube. Sabia que ele nunca foi feliz e que sua felicidade não dependia dela nem de ninguém. Ela sabia que ele precisava se encontrar, mas ele insistia em afirmar que se conhecia e sabia de si. Enganava-se e não se percebia entregando-se ao vício sempre surgindo fácil a sua frente. Ele não recusava, pois recusar poderia dar a entender aos amigos presentes que ele era fraco e não tinha coragem de encarar algo simples... Ele precisava manter seu personagem diante do grande público... E não percebeu o quanto se afundava cada vez mais...

O mundo foi mudando, as pessoas foram mudando e eles também mudavam... A cada dia via na infelicidade de seu par o quanto havia se enganado... Poderia ter sido ele, mas em outros tempos... Quando eles não fossem tão jovens e tão metades... Quem sabe quando fossem já maduros e vividos...Completos! Sendo incompleta ela compreendeu que não podia amar ninguém sem antes se amar primeiro... E buscou por isso! Passou a conhecer-se e gostou do que conheceu! E ele... Perdia-se cada vez mais...

Ela caminhava em direção a si mesma, completando-se cada vez mais e ele ia ficando cada vez mais metade... O vício passou a ser seu melhor companheiro... Não se dava conta de que era influenciável e previsível...

>> continua...>>

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"A violência é tão corriqueira que muitos homens não a identificam. É uma geração que foi criada para não levar desaforo para casa."

Fernando Acosta, psicólogo.

"A violência não é natural. É um comportamento aprendido."

Marcos Nascimento, coordenador de projeto do Instituto Promundo.

Shimada Coelho A Alma Nua
Enviado por Shimada Coelho A Alma Nua em 27/11/2008
Reeditado em 27/11/2008
Código do texto: T1305538
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