A rua de Marília

Vânia viu mais uma vez seu marido olhar para o lado ao passarem pela entrada da pequena cidade, no acesso à rua onde moravam os pais de Marília. Mas desta vez não sentiu ciúme. Sorriu com uma leve satisfação ao perceber que seis anos de casamento a haviam imunizado contra qualquer tipo de sentimento possessivo em relação a Sérgio. E não saberia responder quando, em que momento dos seis anos de convivência, essa sensação de liberdade foi desencadeada.

Desde que se conheceram, sempre que eles iam visitar os pais dele, ao passarem pela rua de Marília, como ela convencionou chamar o lugar, Sérgio discretamente olhava para o lado. Não fazia nenhum comentário. Não suspirava. Nem sequer respirava. Apenas olhava para o lado na esperança de ver alguma coisa que Vânia sabia bem o que era: um indício da presença de Marília.

Eles foram visitar a antiga colega de faculdade de Sérgio muitas vezes, sempre nos meses de férias, quando ela estava com sua família. E Vânia sempre se corroeu de ciúme ao se deparar com a figura magra e bem resolvida, que conhecia vários países do mundo e tinha milhões de histórias para contar. Vânia tinha histórias que só interessavam a ela mesma. Não era admirada pelo marido. Ele gostava dela e pronto. Vânia era o meio dele não ficar mais sozinho.

Tentou se lembrar se algum dia se sentiu amada por ele e a resposta foi sempre. Ela o amava também, apesar daquele insight que teve pouco antes do casamento, que não poderia ser ela mesma se realmente se casasse com ele. Naquela tarde ela o olhou e diferente de todas as outras impressões que tivera a respeito de Sérgio, teve a certeza de que seria mais Vânia se tivesse a coragem de romper com ele naquele momento. Mas não teve. Ele representava toda a segurança que ela buscava. Ela se viu em uma casa confortável e iria doer muito encontrar um dia Sérgio dividindo esse espaço com outra pessoa. Então ficaria com ele, mesmo que isso custasse uma parcela significativa de si mesma. “Foi uma escolha fria”, pensou.

Vânia não podia competir com o passado de Sérgio e Marília. Ela o teve antes. O tempo o teve antes. E Vânia tinha somente o agora. E agora Sérgio havia olhado para o lado a procura de Marília. Só que desta vez não doeu.

Mais tarde, já em casa, o telefone tocou. Era Marília, que estava na casa dos pais e queria rever os amigos. Vânia passou o telefone para Sérgio e foi dar banho nas crianças, como se isso trouxesse de volta a sensação de realidade. Enquanto preparava o jantar, pensou na mágica que fazia com que os dois pudessem sentir a presença um do outro. E invariavelmente pensou no que teria acontecido se ela tivesse tido a coragem de seguir seus instintos. E sorriu.

Sérgio entrou na cozinha, pegou sua mão e levou aos lábios. Não beijou. Apenas ficou segurando, mantendo o dorso contra sua boca. Era o seu meio de voltar à realidade.

Desire Manville
Enviado por Desire Manville em 26/11/2008
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