CAATINGA

Sol forte durante toda semana. Olhos cansados de tanta luz. Tinha saído do acampamento antes do alvorecer, para concluir o trabalho de Ornitologia da Caatinga, mas o dia esquentou rápido demais e os pássaros sumiram. Minha atenção foi desviada para os lagartos que por conta do calor estavam ativos sobre as pedras e na mataria em flor. A Caatinga (Mata Branca em Tupy) apresentava de uma só vez toda sua exuberância, todas suas cores, todos seus perfumes. Parei para observar um ninho de serpentes. Eram pelos menos dez cascavéis (Crutalus durissus terrificus no meio acadêmico) sob o sol, pegando um calorzinho. Animais exotérmicos. Veio-me à lembrança a professora de Zoologia, séria, inacessível, conhecimento limitado ao livro texto, escrito por dois autores norte americanos, dos quais ela repetia semestralmente as mesmas palavras, os mesmos exemplos, os mesmos exercícios, os mesmos trabalhos. Lembrei também do efeito devastador que o veneno daquelas serpentes, com propriedades proteolíticas e neurotóxicas, faz nos nossos tecidos. Minha atenção foi desviada para um teiú (Tupinambis teguixin teguixin) adulto bem grande, que se aproximava sorrateiramente das serpentes a fim de garantir o almoço daquele dia. Foi uma luta desigual. O teiú levou vantagem desde que vibrou a cauda sobre a presa escolhida que foi engolida aos poucos, ainda se retorcendo em volta da cabeça grande do teiú. Saí de perto. Não me competia interferir numa disputa de milhares de anos. Com fome, sentei sob um juazeiro, belíssimo exemplar de Ziziphus jozeiro e comi barrinhas de cereais, biscoito de chocolate, bananas e água, muita água. Encostado no tronco fechei os olhos para descansar um pouco de tanta luz. No momento seguinte, quando abri os olhos, já havia anoitecido. Eu dormira profundamente por várias horas. Levantei atônito. Como voltar para o acampamento? Para que lado ele estaria? Na noite escura, nublada, nem uma estrela para servir de guia. Lembrei do apito. Três silvos breves e três silvos longos quer dizer SOS em Morse e todo mundo sabe que é o pedido universal de socorro. Mas o apito não estava no bolso superior esquerdo do colete. Procurei em todos os bolsos da roupa, seis no colete e quatro na calça. Eu tinha deixado sobre a cama quando fui encher o cantil e para não acordar os colegas, não havia voltado ao quarto. Merda! Como é que eu pude fazer uma merda dessas! Pensei em fazer sinal com a lanterna, bateria nova, feixe de luz potente, se eu apontasse para as nuvens, fatalmente o sinal seria visto, mas teria alguém olhando para cima? Peguei o GPS, nele estavam gravadas as coordenadas do acampamento 8° 35’ 45” S 42° 45’ 16” W fazendo a diferença para onde eu estava, eu devia ter andado perto de cinco quilômetros. O equipamento marcava com diferenças de até cinqüenta metros, mas a dúvida permanecia, para que lado estava o acampamento. Ativei a bússola do GPS e marquei direção leste, eu lembrava que estive sempre com o sol nas costas, portanto deveria voltar em direção contrária ao oeste. Se eu me desviasse o GPS avisaria. Tentei lembrar algo notável no caminho para servir de guia. Além do lajeiro das serpentes, só o conjunto dos xique-xiques candelabriformes, com a palma forrageira carregada de frutas e flores (Pilocereus gounellei e Opuntia ficus indica para os botânicos) que mais pareciam uma mesa posta com os castiçais e a fruteira ao meio. À noite, na Caatinga, os sons são assustadores, a maioria dos animais tem habito noturno e ficam ativos a partir do crepúsculo. Mas eu estava protegido, a bota até os joelhos a roupa grossa, nada poderia me fazer mal, apenas os mosquitos, as “mosquitas” melhor dizendo. Renovei a carga de repelente, principalmente no rosto e nas orelhas. O único risco preocupante seria encontrar porcos do mato sem uma arvore para subir. Mais alguns passos e achei o lajeiro, sentado no chão, e usando uma pedra fiz os sinais de SOS, cadenciados por muito tempo. As pedras se esfarelavam e eu pegava outra. Até que em dado momento ouvi apito respondendo o sinal. Passei então para a lanterna. Em pouco tempo surgiram três colegas no meio da mata de Caesalpinia pyramidalis, a famosa catingueira, transbordando em flor. Os colegas preocupados com minha ausência haviam ficado em silêncio até ouvirem o pedido de socorro. Eu havia cometido de uma só vez os deslizes inaceitáveis para quem se propõe fazer um trabalho científico sério. Esqueci o apito e a caderneta de campo. Não deixei o meu roteiro no quadro de avisos, dormi no campo e o principal deles, fui só. Para compensar o trabalho dos colegas, carreguei de volta para o acampamento todo material de primeiros socorros com maca e tudo.