Victor

A relação dos dois era tão improvável quanto o que ele pretendia fazer com sua vida. E improvável também era a aceitação das filhas. Enquanto dirigia pelo pesado tráfego de Botafogo ao fim da tarde, pensava que todas as suas últimas resoluções não passavam de tentativas de um velho em retroceder o tempo. A primeira loucura foi entregar a empresa nas mãos dos dois genros e passar um mês na Espanha percorrendo o Caminho de Santiago. Era um sonho de juventude e nada melhor para resgatar o período do que realizá-lo. Só que não tinha mais vinte anos. Victor tinha quase sessenta e quando faltavam menos de cem quilômetros para o final do percurso, uma dor na perna direita o obrigou a parar, ligar o celular que passara semanas em um bolsinho escondido da mochila e pedir para a filha mais velha, médica, uma receita de relaxantes musculares, que não veio acompanhada das recriminações que ele esperava.

A segunda loucura estava em curso. Ele, que já havia vivido tudo e que chegou a se sentir cansado da própria vida, agora dirigia para a Praça da Bandeira, na tentativa de ver novamente uma mulher. Não era uma mulher qualquer. Era uma jovem instigante o suficiente para tirar toda a segurança que a conta bancária lhe dava. Em toda a sua vida foram poucas as rejeições. Nenhuma após a aquisição da companhia siderúrgica. Pela primeira vez em muitos anos sentiu novamente o medo de se permitir ter a alma preenchida por alguém que não o quer. Não tinha uma só esperança. Nem um único sinal favorável à sua busca. Pensou em todas as mulheres que já havia tido, propositadamente comparando-as à Sílvia, para encontrar algo em qualquer outra que o fizesse dar meia volta. Não achou. Desde que a conheceu em Madrid, na fila de embarque do vôo que os trouxe de volta ao Brasil, não pensava em outra coisa. Victor queria Sílvia e mesmo que não quisesse cogitar, a possibilidade de não tê-la era insuportável. Não apenas pelo prazer do toque e das sensações que antecipava. Havia a promessa de uma descoberta naquela mulher e certamente ela ignorava isso.

Em um dia normal, Victor não teria sequer olhado para Sílvia. Mas naquele dia ele olhou. Era uma jovem na fila de embarque vestida com simplicidade e acompanhada por um rapaz. Estava de costas para ele e pouco se movimentava. Tinha medo de voar. Naquele momento Victor ainda não sabia disso. Olhou para o casal a sua frente por não ter nada mais para olhar. Victor respirava alto, entediado com a conversa do rapaz. Chegou a pensar que ela deveria mandá-lo calar a boca. Ele estava prestes a fazê-lo. Mas Sílvia não o fez. Olhou para o lado, deixando antever a curva do maxilar com o pescoço. Aquela mera visão provocou em Victor reações que ele não entendeu. O tempo de espera na fila, que normalmente ele não enfrentaria, ficou curto. Com uma certa impaciência desejava que ela tornasse a virar a cabeça e permitisse uma nova visão de seu rosto. Ele ainda não a tinha visto por completo mas já previa que iria querer ver aquele rosto e aquele ângulo do maxiliar com o pescoço muitas vezes. Pensou em como poderia tomar parte daquela conversa para fazê-la se voltar novamente e achou o momento quando o rapaz comentou a aridez do solo espanhol. Ela então virou-se para trás para ouvi-lo falar e Victor perdeu-se no que viu. Não era bonita. O rosto era uma mistura de traços fortes e delicados que não tirariam o senso de ninguém. Só que Victor percebeu-se completamente sem rumo diante dela.

Sílvia não poderia saber o que causava. Conversou com ele e chamou-o de senhor o tempo todo. Morava no edifício que havia sido construído onde era a casa dele no início de sua vida profissional. Essa coincidência mostrou o abismo de tempo e conquistas que os separava. Victor já tinha tudo e ela ainda estava começando. E esse abismo ficou mais vísivel após o embarque, quando ela seguiu para o fundo do avião, despedindo-se dele, que ficara na classe executiva.

Durante a viagem Victor não resistiu e foi para a econômica. A encontrou adormecida, com a cabeça apoiada no ombro de seu acompanhante.

- Ela tem medo de voar e tomou remédios para dormir. Só deve acordar quando aterrissarmos - o rapaz comentou. Victor não sabia se tinha escondido sua decepção. Ficou conversando com o garoto só para vê-la dormir. Ao gesticular viu o contraste de sua mão grande e marcada, contra a pele lisa daqueles dois. Achou melhor voltar para seu lugar.

Era irônico. As pessoas que fazem o Caminho de Santiago se encontram. Ele se viu em uma busca ainda maior. Deveria ter concluído a caminhada, assim não precisaria mudar as passagens, manteria seu lugar na primeira classe, voaria outro dia. Talvez se não tivesse desistido, teria se encontrado com o homem que era. Mas desistiu. E nessa desistência se descobriu como um jovem, desejando tudo o que a vida tem para dar e cobrando do seu corpo essa disposição.

O reencontro com a família no sábado à noite não o ajudou a colocar as coisas no lugar. Eram suas filhas, seus genros, seus netos. Sua casa, seu vinho da reserva especial. Mas faltava algo e essa falta era tão grave que lhe dava a sensação de estar respirando ar frio. Estava inquieto, querendo retomar sua vida a qualquer custo. Ainda se sentia em 1971, mas já era 2008.

Quando estacionou diante do prédio onde ela morava, o ar não era apenas frio. Era gelado e chegava a doer nos pulmões. Teve que rir. O verão carioca não combinava em nada com aquela sensação de frio, que só iria passar - e isso ele tinha mais do que certeza - quando ele respirasse o hálito de Sílvia. A sua vida estava na curva daquele pescoço, precisamente no ângulo que formava com o queixo.

Desire Manville
Enviado por Desire Manville em 21/11/2008
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