Folheto poético número quatro

Quando Taís conheceu João ele estava diante da Biblioteca Nacional vendendo poesias com alguns amigos. Eles não eram simples artistas de rua. Não estavam declamando por ideologia. Aliás, nem sequer estavam declamando. Não esperavam ser ouvidos e não poderiam se comparar aos artesãos, nem aos desenhistas que dividiam espaço com eles, pois não faziam trabalhos em série e nem sob encomenda. Apenas precisavam sobreviver e a arte lhes dava meios para isso.

Naquela época Tais trabalhava como contadora, e se tinha uma coisa que não havia em sua vida, era poesia. E ela nem queria parar para ouvir o que o rapaz que a abordou iria dizer. Estava pronta para falar que não desejava comprar nada, mas ele vendia poesias. E isso ninguém tinha oferecido para ela antes.

Taís não se surpreendeu quando ouviu de João que ele era o autor dos versos que estava vendendo e que, se ela olhasse bem o material impresso, veria que já era o terceiro folheto poético editado por ele. Diversos artistas famosos já haviam comprado suas poesias nas saídas de teatros. E o dinheiro ele usava para pagar a faculdade. Taís até quis dizer para ele que não havia nada de excepcional em escrever poesias. Não para ela. Excepcional era parar as pessoas que andam pelas ruas do centro do Rio para oferecer versos.

Quando surgiu uma vaga para estagiário na empresa onde ela trabalhava, Taís sugeriu João. Não saberia dizer porque o nome dele lhe veio a cabeça. Naquele dia ela perdeu quase duas horas de trabalho na internet, lendo as poesias que ele postava em um blog. E sem pensar muito, mandou um e-mail avisando do emprego.

Eles passaram a trabalhar juntos e para João, melhor do que ter um salário fixo, ainda que fosse uns trocados, era poder conhecer um pouco de Taís todos os dias. Após algumas semanas, ficou confuso. Não sabia se escrevia suas poesias para ela ou inspirado nela. Os versos surgiam do nada. Ou do quase nada. Um movimento de cabeça, a forma de segurar a caneta, a maneira como assoprava os fios de cabelo que lhe caíam sobre o rosto. O menor gesto o colocava em um tipo de desespero por escrever. Se não tivesse papel a seu alcance, saía pelos corredores da empresa murmurando as palavras para não esquecê-las. Tinha poesias em todos os tipos de papel. Em fax, em envelopes, cantos de páginas de jornais, guardanapos e post-it. Poesias o suficiente para um livro ou para dezenas de folhetos.

Numa tarde de sábado, em que selecionava as poesias para o folheto número quatro, decidiu que ela não só o inspirava, mas também que ele escrevia para ela. E Taís precisava saber disso. Essa constatação virou uma poesia. João não quis perder tempo fazendo cópias do folheto. Pegou o original e levou para a casa de Taís. Do ônibus viu uma cidade nova e encontrou palavras para definir quase tudo. Chegou a ficar ressentido das expressões de tristeza e frustração que viu ao seu redor, embora não tenha se abalado. No prédio onde Taís morava encontrou a porta aberta. Entendeu como um bom sinal. Se ela demorasse para atender o interfone, talvez se sentisse compelido a sair correndo. Não era o que queria.

Por um segundo, hesitou diante da porta. Ao entrar, apressou-se em justificar a visita. Queria que ela visse o novo folheto em primeira mão. E que ouvisse uma das poesias ditas por ele.

Tais não gostava de ver ninguém exposto diante dela. Não gostava de amigos tocando violão na sua casa, porque não tinha certeza se conseguiria esconder sua desaprovação ou mesmo manter obscuras as reações que a música e a interpretação causariam. Não gostava de ver as pessoas que conhecia e, principalmente, as pessoas próximas se expondo à suas possíveis críticas, ou revelando algo que ela queria que permanecesse escondido.

E naquela tarde se viu muito constrangida diante de João, na sala de sua casa, ouvindo o rapaz declamar o último poema do folheto número quatro. Aquele especificamente não havia sido escrito para ela. Não consciente. João queria que ela ouvisse dele, antes de ler o restante do folheto que honrosamente acabava de receber. Ela deveria saber que havia sido separada dos demais moradores do Rio de Janeiro, que precisariam pagar para ler aqueles poemas. E mais do que isso, jamais ouviriam João declamar as poesias com um sorriso confiante de quem sabe que está causando algum tipo de estrago emocional em alguém.

Quando ele terminou, não precisou esperar por nenhum comentário. Ela os proferiu antes mesmo que o último verso fosse dito. Aquele “gostei muito”, com um ar de admiração ensaiado, para ele não valeu nada. Ele já havia observado, nos mínimos detalhes, todas as tentativas dela de esconder a surpresa e excitação que as palavras ditas por ele lhe causaram. Os lábios entreabertos a partir do quarto verso, o suspiro disfarçado com um movimento sobre a cadeira, seguido de um cruzar de pernas e mãos fechadas.

Enquanto ele declamava, olhou diretamente para os olhos de Taís, mas pode ver de relance as pontas do dedos ficarem brancas com a pressão, e os dedos dos pés se encolherem nas sandálias. Tudo aquilo era muito mais do que um gostei muito e se ele não estivesse empenhado em manter-se próximo a ela, mesmo que a proximidade fosse ditada pelas frias regras de convivência no ambiente de trabalho, a teria beijado. A possibilidade de viver um romance com aquela mulher não valia o risco de perder a chance de conviver com ela diariamente. Poderia até ser perfeito, mas só de imaginar que por um erro de interpretação ou por excesso de confiança em sua poesia, poderia agir impulsivamente e ser demitido, e não poder mais ser diariamente inspirado por ela, o fazia repensar suas ações. Ter aquela mulher seria tudo, mas não poder estar com ela por tentar isso, seria a morte.

Taís terminou o comentário com um suspiro de alívio. Poderiam agora falar do tempo, do escritório, tomar um café ou sair para caminhar no calçadão. E era isso que ela queria. Sair dali o mais rápido possível. Não foi o que fez. Quando percebeu já estava abrindo uma pasta onde guardava aquarelas que ela pintava nas horas vagas, para mostrar para João. A necessidade de compartilhar algo que fosse só seu a chocou. Ele olhou cada um dos trabalhos surpreso. Pensou que ela gostando de arte poderia ser mais crítica a sua própria arte e experimentou uma certa insegurança. Quando fez comentários, ela guardou os trabalhos. Poderia sim mostrar as pinturas, mas não estava pronta para ter sua técnica avaliada. Só queria que ele tivesse algo único: uma breve visão da sua alma. E era o máximo que ele teria dela.

Desire Manville
Enviado por Desire Manville em 21/11/2008
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