O Repouso das Borboletas
Até então era a única que não percebera o tamanho de sua futilidade. Nem um pé, nem uma mão. O corpo permanecia inerte junto ao balcão. Os cabelos longos e negros tinham sempre uma das mãos para alisá-los, desembaraçá-los. Sempre que uma ajuda era solicitada (parecia uma súplica), dava mil desculpas e ficava sem ceder.
Mas Juliette tinha uma preocupação sim. A de ir embora, chegar em casa e assistir à novela. Sentava em frente ao televisor sem nem atender ao marido. Nem mesmo quando a chamara 3 ou 4 vezes. Juliette queria mesmo era usufruir do momento. Pedrilo, o filho de 8 anos, se acostumara com o desleixe da mãe, já Bianca, 16, ainda rezava e rezava para uma melhora da matriarca, mas cada vez que se aproximava daquela que lhe amamentou até os 6 anos de idade, era convidada a retirar-se a fim de deixá-la sozinha.
Na loja onde trabalhava passava maior parte do tempo fazendo ligações para amigos distantes e familiares desconhecidos e atendendo o cliente que melhor lhe agradasse. Sem contar as inúmeras vezes que abandonava a função para observar os seres humanos transitarem na calçada, ouvir os pássaros e observar os ventos jogarem toda sua fúria contra os galhos das arvores.
No lar, a novela era seu programa favorito. Mas ninguém ousava em perguntar-lhe sobre o capítulo anterior. Era o que menos importava para Juliette. Mas sabia sorrir em frente ao aparelho. Um sorriso sem significado. E também chorar. Aliás, era o que mais sabia fazer. Chorava sem motivos aparentes, mas chorava. O soluço chegava e a impedia de falar. Quando os créditos finais apareciam na tela, Juliette levantava do sofá, ia até a cozinha, apanhava um copo d’água da torneira e ia para o quarto. Sem boa noite ou qualquer espécie de despedida. Colocava o copo sobre a cômoda, abria a primeira gaveta e retirava um frasco de remédios. Inclinava-o sobre a palma da mão esquerda que recebia 3 comprimidos. Jogava-os na boca e deixava o restante para a água que logo engolia. Devolvia o copo à cômoda, sempre com um tanto de água que deixava para ser abençoada pela ultima oração do dia. Deitava-se de lado e expelia as últimas lágrimas e dormia.
Tornara uma rotina. Visitava o médico 2 vezes na semana. A cada 15 dias permanecia no quarto da clinica, sem receber visitas, por vontade própria. A única exigência era um televisor para que pudesse assistir aos capítulos finais da novela. Torcia para que a mocinha se curasse da doença grave que lhe devorava o cérebro e que se casasse com o grande amor da sua vida para serem felizes para sempre. Mas isso perduraria por mais 4 dias até o último capitulo.
Na última semana da telenovela, Juliette preferiu ficar no luxuoso leito da clínica. Aceitava todas as atenções, mas queria sozinha, sem interrupções, naquele horário único. O médico já a havia liberado das atividades do trabalho. Precisava repousar. Comunicou ao marido e filhos. Poucas visitas a pedido dela. E que aguardassem o desfecho da novela.
Sexta-feira. O capitulo final. Juliette estava ansiosa em frente ao televisor aguardando o grande momento em que a mocinha sobreviveria às dores da doença e teria uma vida nova ao lado do mocinho.
O médico invadia o quarto a todo instante a fim de saber se Juliette precisava de algo. Ela nem piscava. Atenta a cada cena.
Momentos depois o médico retornou. Encontrara Juliette com os olhos inchados. Soluços. Na imagem da TV, os créditos finais.
Sentou-se ao lado dela. Segurou sua mão e perguntou se estava tudo bem.
- Sim doutor. Estou feliz.
- Feliz? Mas está chorando.
- De felicidade, doutor. Ela ficou curada e se casou com o amor da sua vida. Foi lindo!
- Ela quem?
- A mocinha da novela.
- E o que ela tinha?
- Não sei bem, doutor. Mas acho que era uma doença grave. E ela ia morrer. Os doutores já tinham perdido as esperanças. Mas ela foi forte e sobreviveu.
- Eles a salvaram?
- Acho que sim. Mas acho que foi Deus, doutor.
- Que ótimo, Juliette. Você também ficará boa. E...
Ela o interrompe.
- Doutor. Posso pedir uma coisa pro senhor?
- Claro.
- Pede pro Joaquim levar as crianças pra casa. Eles estão aí fora, não estão?
- Sim, Juliette. Estão aguardando para lhe ver.
- Doutor, estou muito cansada. Preciso dormir. Acho que quero ir pra casa amanhã.
- Tudo bem, Juliette. Deite-se. Darei o recado a eles.
- Obrigada, doutor. Estou feliz. Amanhã estarei mais forte. Boa noite.
O médico apagara a luz e retirara-se. Foi até a sala de espera e deu o recado a Joaquim que decidiu ficar ali mesmo com os filhos e aguardar.
Na madrugada, Joaquim foi acordado por um forte perfume que invadia a sala. Um perfume familiar. Sentiu as pernas afrouxarem. Chamou o médico que prontamente chegou. Pediu que fosse ao quarto de Juliette.
O médico solicitou que alguém desse atendimento a Joaquim e correu até o quarto. Abriu a porta. As cortinas esvoaçavam com a ira dos ventos. Juliette estava sobre a cama. O coração estava sinalizando suas últimas batidas. Mas o sistema neurológico já havia se perdido. No dorso da mão esquerda estava escrito Meu Final Feliz. E na mão direita, uma borboleta verde repousava junto dela.