QUASE FANTASMA

Para compensar a tarde da sexta feira, trabalhamos uma hora a mais de segunda a quinta e às 11h30, saímos do escritório. Para que a Companhia não ficasse totalmente fechada, havíamos feito sorteio entre os funcionários para que uma dupla mantivesse um plantão e essa tarde seria compensada na segunda pela manhã. Tudo acertado, despedidas da maioria e fomos com os funcionários mais graduados da Sucursal Paraíba, almoçar no Cassino da Lagoa, restaurante antigo e muito bem freqüentado pela sociedade paraibana. Nessa época não havia a restrição, que felizmente existe hoje, em se beber e depois sair dirigindo. O slogan “se beber não dirija” ainda não estava em voga, apesar de o bom senso fazer essa recomendação desde sempre. Findo o almoço, peguei o carro e vim para o Recife. Viagem tranqüila, céu de brigadeiro com muita luminosidade. As estradas da Paraíba sempre foram um tapete onde se roda macio, convite permanente a testar se o ponteiro do velocímetro realmente chega ao VDO. Quando cheguei naquela esplanada no município de Alhandra, já bem próximo à fronteira com Pernambuco, lá estava a desgraceira. Um acidente grande envolvendo ônibus de passageiros, uma caminhonete de cabine dupla, dois carros pequenos e uma caminhonete tipo Veraneio da Polícia Rodoviária Federal. Tinha pedaço de ferro e de gente por todo lado na pista e no acostamento. A polícia estava no local e tentava desobstruir a rodovia para dar passagem aos veículos não envolvidos no acidente e que já formavam longas filas nos dois sentidos da pista. Desliguei o carro e fiquei aguardando a minha vez de sair daquele inferno de ambulâncias, carro do IML, curiosos e carros, muitos carros. A música suave do rádio ligado mais o calor daquela tarde luminosa me fizeram dormir. Acordei com um policial perguntando se eu poderia dar uma carona até Goiana. Normalmente eu não dou caronas. Afinal não se sabe as intenções ou a índole da pessoa que vai ficar ao nosso lado por quilômetros. Nossa atenção terá que ser exclusivamente para o trânsito deixando-nos à mercê de desconhecidos. Mas pela surpresa e pelo torpor do sono, concordei. O policial sentou a meu lado e disse:

- Vamos pelo acostamento eu preciso chegar logo em casa.

Era uma infração, mas eu estava obedecendo a uma autoridade do trânsito, os outros policiais se viram, não deram importância ao fato. Um deles até acenou quando passei. Eram corpos dilacerados, membros destacados do tronco, uma cabeça decepada, estava no acostamento nos observando, com os olhos bem abertos e um esgar de sofrimento. Impressionante. Para tentar aliviar o incômodo da cena, falei para o policial.

- Esse pessoal não tem jeito. Todo mundo sabe que não deve abusar da velocidade, mas só sossega quando ocorre uma desgraça dessas.

- É. Na minha profissão tenho visto muita coisa feia, mas não com essa proporção. Foram mais de trinta. E eu estava lá, no meio deles.

Quando o policial disse isso, senti um arrepio percorrer toda a espinha dorsal e pensei, estou transportando um fantasma. Imediatamente vieram à lembrança todas as fantásticas histórias de aparições, de comunicação com mortos, encontros inusitados etc. os solavancos do carro avisaram que havíamos deixado a Paraíba e seus tapetes de asfalto. As estradas de Pernambuco feitas com blocos de concreto estão sempre mal cuidadas e pela falta de manutenção a buraqueira é um perigo constante, mas a presença do fantasma não me animou a diminuir a velocidade. Estávamos perto dos cem quilômetros por hora. Num tranco mais forte o policial advertiu.

- É melhor diminuir a velocidade. Eu já escapei de um acidente hoje, não preciso de outro.

Ainda desconfiado, aliviei o pé do acelerador e o policial continuou.

- Eu estava no meio da pista voltando para o posto quando aconteceu.

Com a voz embargada pelo medo, perguntei como foi isso?

- Parece que o pessoal da caminhonete de cabine dupla é desses de roubo de carga. O carro da Rodoviária vinha em perseguição e eles se atravessaram na frente do ônibus que estava cortando os dois carros pequenos. A caminhonete foi batida de lado e capotou várias vezes na pista. No reflexo o motorista do ônibus puxou para o acostamento e os dois carros pequenos se engavetaram entres as rodas do ônibus que virou na pista. A caminhonete da polícia que vinha atrás, não conseguiu desviar e entrou pelo para brisa traseiro dele. Eu não sei como foi que tive agilidade para correr até ficar por trás do posto policial. Um dos policiais da perseguição era meu primo. Aí eu tive uma crise nervosa quando o vi morto, os colegas me deram um calmante e o tenente, aquele que fez sinal quando o senhor passou, mandou-me para casa.

- Quer que lhe deixe na porta de sua casa?

- Não tem necessidade. A minha casa é logo atrás desse primeiro posto. Muito obrigado e corra menos.

A recomendação foi desnecessária, eu não precisava correr mais. Para que a pressa, se meu passageiro quase fantasma já havia descido.