Rotina
Mais um dia começa. Noite mal dormida e sem sonhos. Levantei três vezes pra mijar. Mijava como um velho nessas últimas duas semanas. Duas ou três, não tenho certeza. Acordo com a cara inchada e duas olheiras imensas. Se eu fosse mais branco e mais peludo, ficaria parecido com um panda.
Lavo o rosto, dou outra mijada e arrumo a cama. Esvazio a garrafa de café e coloco água pra ferver. Volto pro quarto e, enquanto me arrumo, penso no pouco dinheiro que sobrou na carteira, o suficiente para comprar pão pro café-da-manhã. Me arrumo com roupa social, sem gravata nem paletó, volto pra cozinha e jogo a água quente na garrafa pra escaldar. Coloco mais água pra ferver, fecho a garrafa e saio à padaria.
Engraçado como todas essas coisas se tornaram uma rotina sólida. Mal percebo o que faço. Mal me percebo, pra ser sincero. É como se eu fosse um robô, e as tarefas, coisa de algoritmo que implantaram na minha memória. Repetição pura, simples e eficiente.
Volto com os pães e arrumo a mesa. Passo o café, tomo o desjejum, pego minhas coisas e saio. Dez minutos de caminhada até a estação do metrô, meia-hora de trem abarrotado até a outra estação, mais dez minutos de caminhada e, dez andares depois, estou no escritório. Bom dia, tudo bem, me ouço dizer como digo todo dia útil. Não sei porque essa história de dia útil. Que real utilidade há entre a segunda e a sexta? Trabalho, aporrinhação, e aquela sensação vaga de estar vendo a vida passar enquanto a gente definha.
Eu definho de nove às dezoito, com pausa de uma hora pro almoço, num estágio que paga mal e exige muito. Aliás, creio sinceramente que o estágio é o regime escravagista moderno. Que melhor forma dentro da lei de se ter alguém trabalhando mais e ganhando menos do que um funcionário? Bem, isso já não é importante. Estou nessa há um ano. Com o tempo a gente acostuma e acaba arranjando nossas próprias compensações.
Cobranças de clientes, atrasos em testes de produtos e relatórios, tudo isso entupindo a caixa de entrada de e-mails e minhas artérias. O coração chega a bater descompassado. Incompetência não tem perdão. Errar pode até ser humano, mas ser incompetente é coisa que não se perdoa. Nem Deus perdoa. Adão e Eva tão aí pra isso: incompetência em resistir às tentações. Ao menos é o que a Bíblia diz.
Eu não acredito na Bíblia, me considero um livre-pensante. Já fui vaquinha de presépio de muita ideologia e filosofia escrota, já me fodi muito, tomei porrada, quase fui preso, isso tudo antes dos dezoito. Hoje, sou um quase pequeno-burguês, pelo menos tenho a cautela e a pretensa imparcialidade de um.
Respostas para os malditos e-mails. Cobro de um, ameaço outro e peço desculpas a um terceiro. Minha "chefa" - um simulacro de patricinha que dá mole pra qualquer um em show de Axé só pra tirar o corpo fora e ver o cara na mão - fica vendo YouTube. O chefão do escritório vomita uma piadinha de duplo sentido a cada cinco minutos. Me sinto um alienígena. Vai ver é por isso que nunca tivemos contato de verdade com nenhum: o ser humano é a maior prova de que não há vida inteligente por aqui.
A cadeira é baixa, e o encosto, mole. Tenho que me encarapitar sobre o teclado pra escrever. A fome bate. O ar-condicionado me congela até os ossos. São dez e meia. Ainda tenho duas horas de trabalho pela frente, no mínimo, antes de poder almoçar. Minhas costas doem. Não tenho remédio. Não sei se como no Subway do shopping ou num self-service duas quadras acima.
Da janela aberta, ouço som de pneus fritando no asfalto. Uma freada. Algo bate. Alguém grita. E, bata, todo mundo do escritório corre pras janelas. Eu não preciso correr, tem uma do meu lado. Levanto e abro bem a janela. Lá embaixo, estirado no chão, um corpo. Um fio grosso de sangue escorre a ritmo de lesma.
É um homem. Enxergo bem. É um homem. Tem cabelo grisalho. Está caído no chão numa posição estranha, meio esdrúxula. É uma posição de... de... atropelado, oras. Um círculo se forma em torno da cena. Curiosos. Todos são movidos apenas pela mórbida curiosidade de ver o novo presunto que vai engrossar as estatísticas. Em breve, será a notícia do momento, não vai se falar em outra coisa. Não pelo resto do dia. Talvez pelos próximos quinze, vinte minutos. Depois, todos esquecem.
Ele, o morto, não usa roupas chiques. Usa camisa curta de flanela xadrez, calça jeans e umas botas marrons, imagino, surradas. Minha mente viaja. Vejo-o de mãos fortes, dedos tortos e pele áspera. Imagino uma aparência cansada, dez ou quinze anos a mais do que sua idade real. Imagino uma aliança fina, meio torta, de ouro manchado pelo tempo, na mão esquerda.
Imagino uma mulher, que, como ele, também é cansada. Uma mulher que, como ele, também tem roupas toscas, jeito tosco, alma tosca. Uma mulher que pariu dois filhos, que lava e passa pra fora. Imagino essa mulher em casa, lavando roupas à mão num tanque de concreto enquanto os filhos, um garoto e uma garota, cuidam da casa e da comida antes da escola. Uma família pequena, de vida limitada. Tosca. Mas, enfim, uma família.
Eu gosto de família. Tenho uma família grande - pai, mãe, irmã, cunhado e primos, todos na mesma casa. Muitos problemas. Mas eu gosto. É família. De verdade. É aconchegante e barulhenta como deve ser uma família. Ele, o morto, não tinha família barulhenta. Eu acho que não.
- Que houve?
É o Aristeu. O único dos outros do escritório que não age como um retardado - sim, tenho meus momentos de arrogância, e foda-se os que não os têm. Ele estava fora, no CREA, pagando uma taxa. Eu acho. O escritório mexe com engenharia elétrica. Relatórios e pareceres.
Eu gosto do Aristeu. Ele é meio tosco. Como eu. Como aquele homem caído ali. O sangue ainda escorre. Uma viatura da polícia militar logo chega.
- Atropelaram ele, eu acho.
- Quando?
- Agora há pouco.
Silêncio. Outra viatura chega. É do IML. É o mal-fadado Rabecão, no idioma tosco. Ele suspira - o Aristeu, não o morto. A gente assiste o corpo sendo recolhido. Ainda tem gente em volta.
Penso na família. E quando receberem a notícia? E o enterro? E a sucessão de dias depois daquilo? Dá quase pra sentir a dor deles. Quase. Uma mulher não mais tem o marido que a esquentava de noite debaixo das cobertas. Uma menina não mais tem o pai que dava bronca e carinho. Um menino não tem mais o homem em quem se espelhava e que ajudava na lição.
Um homem vira estatística. Um homem vira notícia. Um homem bom morre. Seria cômico se não fosse trágico. Aliás, não é cômico nem trágico: é irônico. Especialmente quando tem tanto filho da puta que podia empacotar no lugar dele. Como meu chefe.
O Aristeu suspira.
- Que merda.
Eu suspiro.
- Pois é.
Sento de novo na cadeira baixa de encosto mole. São onze e nove. Minhas costas doem. Não tenho remédio. Logo esqueço do homem. E de mim.