ANIMAL ACUADO

1

Às doze horas, quando a sirene apitava, os operarios largavam para almoçar. Entre esses eu enxergava Jarbas. Figura baixa, gorda, de calças colantes ao corpo, que se chegando ao balcão que dava para a calçada, gritava:

- Sandro!

De onde eu estivesse, se no bar ou na sala vizinha, onde havia mesas para as refeições, respondia:

- Tou indo.

Ele sorria, fechando o olho esquerdo, com a pálpebra de normal caída e adentrava. Sentando-se, esperava a refeição que, apressadinho, nos meus doze anos, iria buscar.

Subindo a escadinha do oitão, encontrava-me na residência da qual retornava com o almoço coberto por um prato.

- Me dê uma água mineral sem gás.

Atendia-o. Então, tendo almoçado, o meu tio encontrava-se próximo, observando-me, procurando um motivo para reclamação. Angustiado, sentia o coração apequenar-se. Por enquanto, estava livre de grosseria, contudo, o restante da tarde - como estudasse, a noite não trabalhava - prosseguiria assim? Difícil ocorrer, pois, por um nada, ouvia:

- Você preste mais atenção no serviço. Só quer vadiar!

Mas, o que eu fizera? Por ter segurado o carrinho do guri, enquanto ele desenrolava o confeito que comprara?

- Em sua idade eu dava um murro danado. Você não quer saber de nada. Preguiça tá aí!

Então devolvi o brinquedo e mais uma vez - quantas desde que viera morar com o tio? - senti os olhos turvos pelas lágrimas. Ah, se não tivesse de aguentar reclamações, pudesse levar uma vida igual aos dos outros meninos que presenciava jogando bola, soltando papagaios, ou simplesmente correndo!

- Vai, despacha o freguês.

Debruçado sobre o balcão o homem pedia:

- Uma cana e um caldinho, no capricho.

Eu então enchia o copinho de aguardante e numa xícara punha feijão - retirado da garrafa térmica - com um ovo de codorna, camarão, pingava mostarda e a entregava com o copinho.

- Leseira lava agora os pratos.

Novamente a voz gritada. Lavando a louça, ficava pensando. Sofria por não ter pai vivo, por minha mãe não possuir condição de se manter com os filhos. E pensar que ela acreditara que o filho em companhia do tio teria nova existência... Lembrava-me da véspera da partida.

- Seu tio vem lhe buscar. Você irá passar uns tempos com ele. Procure obedecer, ajudar ele no bar. Tenho fé em Deus de que tudo irá dar certo...

Vencida pelo que lhe ia n'alma, não mais pudera falar. Entendendo-a, desviei o rosto de lado, para que não me notasse com a vista nublada também por lágrimas.

Apressava-me em terminar o serviço. Disfarçando, enxuguei os olhos na manga da camisa. Retrocedendo ao balcão, indaguei ao novo freguês o que desejava.

- Bota uma cachaça com caju, quero ver se não curo essa maldita gripe.

- É pra já!

Sempre próximo, o tio observava-me.

Temeroso agilizava-me.

2

Como se me alimentando fizesse algo errado, comia apressado, sem sentir o sabor da carne, do feijão e arroz.

Sempre próximo, encontravam-se aqueles olhos analíticos... Cabisbaixo, cuidava de logo deixar a mesa.

- Ou leseira, você quer adoecer? Comendo às carreiras!

Mais uma vez a voz grossa, antipática. Por que a mulher do tio, sabendo sem ninguém para me defender, não me socorria? Contudo, mantinha-se indiferente.

- Acabou, Leseira? Vá para o bar.

Erguia-me. Sentindo-me o menino mais infeliz do mundo, correndo, vencia os degraus do oitão.

Se mamãe soubesse o que se passava com seu filho...

Adentrava no bar.

3

Às noites, sobre a cama de lona, ficava refletindo. Na sala, embaixo, o tio e a mulher conversavam defrontes à televisão. Apesar da manhã e tarde exaustivas atrás do balcão e também de há pouco ter vindo da escola, portanto, cansado, não sentia sono. E de repente me chegava a saudade de mamãe, dos irmãos, da cidadezinha do interior... Ah, se eu já crescesse, tornasse-me um homem!

- Aí eu queria ver o tio gritar comigo!

Imaginoso investia contra o tio, meu carrasco.

4

Estava diante do homem castigado pelo tempo e a magreza proveniente do recente derrame. Seus olhos - semelhantes aos de um animal acuado - fitavam-me, humilhados. Um pobre velho paraplégico, alguém que não mais lembrava quem implicava - como se encontrasse prazer nisso - com o menino sempre cabisbaixo, medroso. Então, como se repelisse as recordações, falei baixinho:

- Um pobre sofredor.

No corredor conjugado os passos da mulher gorda, com saúde, aproximavam-se. Então me ergui nervoso, sem despedir-me - para quê se nossos silêncios se comunicavam? - e, apressado fugi, de tudo fugi.

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 19/11/2008
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