TRATADO DA ESPERANÇA

Rafael, empresário do ramo de celulose, trabalhava quatorze horas por dia. Não tinha tempo pra família. Com o tempo escasso, dispensava apenas alguns instantes ao lado dela, quando se reuniam pra assistir televisão. A relação com a esposa Angel não passava de algumas carícias noturnas antes do descarrego sexual. Para Rafael, isso era apenas um momento de liberação do estresse. Compensava-a com jóias, roupas e sapatos de grifes famosas. Ela acostumara-se com aquilo. A conversa entre eles restringia-se a questões práticas do dia-a-dia. Rafael não tinha tempo pros filhos, entretanto não lhes faltavam escolas boas, lazer e viagens.

Naquele natal, Angel e as crianças receberam a esperada e prometida visita de Felipe, sogro e avô. Depois da breve recepção, todos fora à sala e conversaram algumas palavras amenas. Num instante, como de costume, prostraram-se em frente ao televisor. E não trocaram mais palavras.

As chamas da lareira estavam acesas. Lá fora chovia muito. O frio era intenso, como que a rachar os ossos. Os pássaros grunhiam escondidos em seus ninhos, alojados ente o telhado e o forro de madeira.

O pequeno Vítor, filho caçula da bela Angel com o sisudo Rafael, brincava no tapete da sala com seus soldadinhos de chumbo. Os outros filhos, Adélia e Antônio, adolescentes, navegavam na grande rede numa sala ao lado.

A tempestade insistia e pedia a atenção da família que, calados, cada um em sua poltrona, assistiam à novela, exceto Rafael que, com óculos bem postos caído ao nariz e com ar de concentração, lia o último manual elaborado pela equipe técnica de sua empresa. Felipe, não acostumado àquele silêncio e isolamento, já se mostrava incomodado.

De repente se ouve um grito vindo da cozinha, acompanhado de uma correria de Angel para a sala. Ela fora preparar um café, enquanto durava o intervalo da novela. Era a natureza que retrucava e insistia pela atenção da família. O susto se dera por causa de um fulminante relâmpago fazendo-se acompanhar, segundos depois, de um ingente trovão. Houve um blackout no bairro. Então Angel, que estava grávida de pouco, mas que o marido não sabia, tirou da tomada o cabo do televisor, pois quando a energia voltasse poderia queimar o aparelho. Depois acendeu um candelabro e pendurou no centro da sala.

O pequeno Vítor, que ainda estava abalado com o tremor causado pelo trovão, levantou-se do chão onde brincava e sentou-se no canapé de vime, recostando a cabeça no ombro de seu avô Felipe, pedindo-lhe que contasse uma história. Então o sábio ancião, atendendo ao pedido do neto, pediu a todos que contaria uma história desde que a família atendesse algumas condições.

- Pode pedir vovô, que nós atendemos. Quais são as condições? Interpelou Adélia.

De pronto o velho Felipe estipulou: Que Angel preparasse um novo e gostoso café, acompanhado de pão de queijo, esquentado ali mesmo na lareira, e que, se a luz retornasse, eles não ligariam o televisor novamente até que terminasse a história. Felipe advertiu a Rafael que interrompesse a sua leitura até o final da história. Todos concordaram. O café e o pão de queijo foi posto na mesa de centro da sala, em frente à lareira.

Então o sábio Felipe contou essa história que clamava sobre a importância da esperança na vida das pessoas e da sociedade. E solenemente começou:

- Haverá um tempo no futuro, daqui a muitos milhares de anos, que a esperança desaparecerá!

- Mas como vovô, a esperança não é a última que morre? Interpelou Vítor.

- Sim, querido netinho. Mas pra que haja esperança é necessário que haja bondade no coração das pessoas, bem como disposição para o diálogo! Redargüiu o avô. E continuou:

- Quando a esperança esvair-se, com ela toda a sociedade perecerá!

Aquele velho sábio, com olhar cavo e mavioso, arfando como é próprio da idade, espádua recaída e no rosto rugas enrijecidas, entendeu que aquela era a hora de transmitir para todos o que a universidade da vida e a lida pelos campos de sua Minas Gerais lhe passara a duras penas. E continuou a sua história.

“Pois assim foi que todos os seres humanos se tornaram inférteis e o mais jovem dos homens era um velho centenário que dormia deitado sobre as palmeiras secas estendidas na areia de um coqueiro torto e cambaleante...

Depois que o meio ambiente deixou de ser preocupação, pois já não havia fauna e flora, pois a última floresta alimentou o ímpeto mercantilista do último e inescrupuloso madeireiro...

Depois que todas as formas de prazer haviam sido exauridas, e a alimentação se restringia à mera ingestão de cápsulas de substâncias concentradas; os atos libidinosos já não mais apeteciam ninguém, pois esgotada e extinta estava qualquer manifestação de sensualidade, deixando assim de existir a sexualidade...

Depois do fim de todos os impérios, sistemas políticos e governamentais...

Depois que chegou o tempo em que qualquer tentativa de organização e manifestação de poder mostrava-se de todo infrutífera...

Depois que o dinheiro perdeu o seu valor e desaparecera por completo a ânsia de acumulação de riquezas, porque mostrar-se detentor de bens já não mais fazia sentido...

Depois que o último sacerdote, pastor ou pajé percebeu que não conseguira mais intermediar as relações com Deus e já não convencia ninguém, consagrando-se assim o fim de todas as religiões...

Depois que as reuniões tornaram-se insossas e o sentimento egoísta reinou soberano sobre o comportamento humano, aniquilando definitivamente a família e sociedade;

Depois que as cercas perderam o sentido de existir e a propriedade privada representava nada menos que o último ato de uma peça trágico-cômica, motivo de alguns furtivos risos...

Depois que todos os homens deixaram de conversar entre si, pois as palavras não mais conseguiam comunicar nada, porquanto somente o olhar e aquela postura fúnebre e triste era o suficiente para denotar o sem-sentido da vida...

Depois que a indiferença, a tudo e a todos, mostrou-se como a única forma de sobrevivência, não obstante apenas a doença e a morte apresentar-se como os únicos remédios para aquele tremendo estado de amargura e solidão...

EIS QUE DO NADA, DO ABISMO DA DESESPERANÇA EM QUE HABITAVA O HOMEM, SURGE UMA SURPRESA... AH, UMA LUZ!!! UMA BELA SURPRESA:

Eis que Deus dá provas de que não desistiu da humanidade, cujo ato representou para aquela gente um novo surto de esperança:

- UMA MARIAZINHA QUALQUER, DA PERIFERIA DO MUNDO, DAS ESQUINAS DA SOLIDÃO E DO DESPREZO, APRESENTA-SE GRÁVIDA. A FERTILIDADE - COROLÁRIO DA CRIAÇÃO DE DEUS - MOSTROU-SE, MAIS UMA VEZ, POSSÍVEL. UMA CRIANÇA IRIA NASCER!

Então as pessoas voltaram a conversar entre si, pois entenderam que a cada criança que nasce Deus mostra a todos que ainda acredita na humanidade, pois esse bebê representa a esperança de um mundo melhor, onde:

• As sementes de solidariedade sejam regadas;
• As crianças não sejam assassinadas;
• Os idosos sejam respeitados pela experiência e pela façanha de terem sobrevividos às intempéries da vida;
• Os diferentes sejam considerados apenas como a luz cintilante de uma pérola azul ante as centenas de pérolas brancas, por isso, belas e valorizadas;
• Entre os países não haja muros ou cercas, mas pontes que unam os povos, pois o cidadão não o será apenas da polis, mas de um mundo sem fronteiras;
• O lastro das moedas será o quantum de qualidade de vida e preservação da natureza, com absoluto respeito à dignidade da pessoa humana e à vida;
• O princípio norteador de qualquer manifestação religiosa será a plena identificação semântica e ontológica de Deus com Amor, e qualquer vinculação de Deus com ideologias justificadoras de poder e dominação será in limine considerada loucura;
• Enfim, que todos os homens e mulheres respeitem-se mutuamente, amando-se uns aos outros como a si mesmo, conforme um antiqüíssimo ensinamento de um mestre, preconizado num tempo muito remoto, cujas palavras estavam escritas num pergaminho perdido no tempo e escondido nas poeiras de uma biblioteca soterrada, descoberta por um arqueólogo há mais de mil anos. Esse livro, que os povos antigos chamavam de Segundo Testamento, atualizava outro, o Primeiro Testamento, que falava de um Deus que criou o mundo e tudo o que nele existe com a força de sua palavra, e sua felicidade era completa, não precisava de mais nada!”

A essa altura, Vítor que já estava dormindo, foi carregado para a cama por Rafael, que pediu ao velho que interrompesse um pouco a história, pois queria saber do final.

Nesse momento a energia elétrica voltou. As lâmpadas se acenderam. Mas a família continuou ali e nem se lembrou da novela, esperando o desfecho da história. O café se tinha acabado e não havia mais pães de queijo. Retornando à sala Rafael perguntou:

- E aí pai, qual é o final da história?

- Não existe final nessa história. Dela, como de qualquer história, apenas se podem tirar algumas conclusões práticas para a vida. O sentido dela é que não precisamos esperar os fins dos tempos, pois por certo não o presenciaremos, para alcançar a sua mensagem.

- Pai, eu gostei da história e de todo o significado que ela traz. Mas o que posso fazer pra melhorar o mundo? Trabalho horas a fio, sou honesto no que faço, bem sucedido e reconhecido profissionalmente, dou um duro danado pra sustentar a família. A parte que faço não é suficiente? Indaga Rafael.

- Não! Definitivamente, não! Tu não precisas contabilizar as tuas bondades. Há que ver o que está faltando. Não te é evidente que, embora cuides materialmente de tua família, o desprezo que tens por ela manifesta-se quando chegas do trabalho? Insiste Felipe.

Mas... Como assim?

- De nada adianta, meu filho, dar o conforto do palácio à esposa e filhos, encher tua família de bens materiais, se lhes faltam o diálogo, carinho, presença e interação. A tua família precisa de ti, precisa de tua palavra. Lembra que a PALAVRA tem força, pois por ela Deus criou tudo o que existe? É preciso mais diálogo em sua família. Acaso tu sabes que Angel está grávida?

- Grávida?! Ela não me disse!

- É preciso que se diga algo que está tão evidente!

Nesse momento, trocaram-se os olhares. Os filhos aconchegaram-se dos pais e abraçaram-se todos. Angel providenciou outro café. Desta vez comeram com bolinhos fritos, carinhosamente preparados pelo próprio Felipe, não sem antes alfinetar:


Oh, grávidas - e todos os que estão em volta dela, cuidem bem de seu bebê, ele pode ser a nossa última ESPERANÇA de um mundo melhor.


                                                       
Brasília, 18.11.2008
Roberto Dourado
Enviado por Roberto Dourado em 18/11/2008
Código do texto: T1290841
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