Policial

Pela comunicação da viatura, o policial recebeu uma ocorrência braba. A voz do companheiro era trêmula, temerosa. Tinha perguntado quantos anos ele possuía de corporação. O policial respondera vinte anos de farda e chutes no traseiro. Então seu companheiro o alertara que jamais tinha visto tamanha bizarrice, mesmo em vinte anos. Acidente de moto. Duas vítimas. Uma mulher e um homem. Ambos pareciam um quebra-cabeça espalhados pela rodovia. Realmente chocante, meu cabra.

Cinco minutos depois chegou ao local solicitado. O policial preparou seu psicológico. Fechou a mão grossa e repleta de calos no crucifixo preso ao retrovisor interno, pedindo paz aos novos mortos. Oração baixa. Plácida. Tanto pra si, quanto pra todos. Seu lema. Abriu a porta de olhos fechados, ainda em oração silenciosa.

Saiu da viatura.

O sol inclemente fritava um mosaico escarlate no asfalto. O policial observou, com asco contido, um cadáver de mulher em estado lamentável. Pernas para cima e o torso para baixo, numa torção de gigante. Um amalgama de cores ígneas cascateava daquele ventre rasgado. As primeiras moscas da manhã voejavam nas entranhas coloridas.

Isso não era o pior.

A cabeça estava achatada contra o chão. O policial lembrou-se de desenhos antigos, quando uma bigorna cai sobre a cabeça de um personagem. Mas aquilo não era um desenho. A cabeça ganhara largura lateral, até parecer uma circunferência de massa de bolo sob um rolo de massa. Aquilo ali ao lado seria matéria cerebral?

Uma imagem triste, deveras triste.

O policial firmou o olhar frio sobre o cadáver. Outro policial falava miudezas ao seu lado. Um marronzinho da CET evitava divisar o corpo, observando com repentino interesse os cumes dos prédios ao longe. Transeuntes metiam rostos curiosos para fora das janelas dos carros e retraiam-se com repulsa em seguida, como estranhas tartarugas.

Sangue por toda parte.

O policial perguntou onde estava a segunda vítima. Seu companheiro, o mesmo que o convocara pelo radio, disse que uma parte do rapaz estava a cem metros dali, “as outras” ficaram espalhadas em intervalos aleatórios. As outras? Perguntou o policial erguendo as sobrancelhas numa indagação estupefata. Sim, meu cabra, disse o alagoano fardado, a situação foi a seguinte: a moto vinha em alta velocidade perto do acostamento, foi fazer uma ultrapassagem naquela truncada ali, apontou com o queixo pontudo para o caminhão parado, e o filho da muléstia encurralou-os contra a grade de proteção, a cabeça de rola doida caiu da moto e beijou o chão e continua beijando, o cabra continuou sendo esmagado contra a grade por cinqüenta metros, até o cabra-de-peia do caminhoneiro se apercebe que tinha alguma coisa errada, meu cabra.

O policial caminhou até a grade de proteção. A impressão é que haviam iniciado uma pintura de vermelho, para torná-la mais visível aos motoristas desatentos. Mas a verdade é que a matéria pegajosa era sangue. Escuro. Resquícios de pele. Mais adiante, numa deficiência pontuda do ferro, havia algo pendurado. Caminhou mais alguns passos e descobriu ser uma corda ensangüentada. Intestino delgado com certeza. Pendia como uma cobra morta do ferro e descrevia dois círculos concêntricos no asfalto. Visão desagradável. Transeuntes metendo cabeções para fora dos carros. Gritavam o nome de Deus e de Jesus ao ver a situação. Bebida, perguntou o policial nauseado. Sei não, meu cabra, só o perito pra responder. O policial ergueu o olhar para o horizonte, seguindo as grades de proteção. Um braço decepado não muito longe, dobras de tendões presas ao cotovelo, um osso avermelhado brilhando ao sol. Metros à frente, duas pernas ligadas por músculos fortes. Os pobres pés também estavam ligados por fios de músculos. Nada era inteiro. Rapazes peguem suas varas, vamos pescar um presunto! O policial findou aquele exercício macabro de procurar pedaços de um cadáver inacabado. A perícia que viesse com Plasil fluindo na corrente sanguínea e uma boa dose de cocaína queimando nas narinas para agüentar aquela porra toda.

O policial perpetrou todos os trâmites necessários. Entrou na viatura e zarpou daquele quadro bizarro. Em sua mente a imagem da mulher de cabeça esmagada persistia numa presença indesejada. O braço do rapaz, tendões amarelados... o policial observou os próprios olhos no retrovisor. Jesus meneava lentamente. Ele também estava desfigurado. A cruz balançava como o pendulo de um hipnotizador. Os olhos do policial não tinham medo. Em cada artéria capilar ali desenhada possuía o segredo de como passar noites inteiras de pesadelos hediondos. Tinha vontade de beber. Nada de sede. Só beber. Jogar álcool naquela fogueira interna que queimava a todo vapor como uma usina nuclear. O braço decepado. A cabeça esmagada. Onde estaria o rosto do homem? Estaria em algum lugar lá embaixo, com vermes roendo-lhe os olhos, formigas passeando nas bochechas, encontrando caminhos pela boca e ouvidos?

Subitamente a imagem encheu o policial de um horror absurdo e ilógico. Onde estaria o rosto dele? Tentou imaginar como seria o rosto do infeliz baseado em seu braço e pernas decepadas. Aquilo pareceu absurdamente necessário ao policial. Saber como era o rosto. Mas não conseguia. Meu Deus, o rosto dele comido por vermes! As mãos do policial agarram o volante com força. Um suor parecido com azeite escorreu-lhe dos sovacos. O rosto, por Deus, o rosto dele. O coração, tal qual animal enfurecido, iniciou uma série de estouros frenéticos. Fechou os olhos com o pé no acelerador. O rosto branco do rapaz flutuava no breu das pálpebras. Na mente do policial, a rodovia tinha se enchido de mulheres com cabeça achatada, braços e pernas decepadas. Os pneus da viatura esmagavam pedaço por pedaço. O policial abriu os olhos a tempo de desviar um ônibus escolar. Não havia cadáveres na pista. Engraçado como essas coisas acontecem.

Em casa jantava. Nada de conversa. A esposa comia em soturno silêncio, observando de soslaio o marido. O policial descrevia círculos com o garfo. Macarrão de ontem. Barulho de massa. Lembrou-se da mulher de cabeça achatada. Do homem incompleto. Do

rosto do braço das pernas da mulher do rosto das pernas do rosto do braço das pernas do braço do rosto das pernas do braço das pernas

Não quer me falar alguma coisa querido? Perguntou a esposa com ar de preocupação.

O policial soltou um gemido neutro, sem despregar os olhos do macarrão.

O filho brincava no tapete da sala. Batia um carro contra o outro e vociferava explosões e gritos. Simulava um atropelamento de um boneco do Comandos em Ação. O policial cerrou os olhos. O filho imitou outra explosão e arrancou a cabeça do boneco. O policial apertou os dentes. O filho emitiu um grito de dor.

Abruptamente o policial berrou com o filho. Mandou-o se calar. Ir dormir! O garoto ficou calado, em perplexidade contida, lábios trêmulos em iminência de choro.

O menino não fez nada, a esposa arriscou com a voz miúda.

Desculpe, o policial desculpou-se... eu vou... er... no banheiro.

E foi.

Trancou-se. Sentou-se a privada, mas não ia defecar. Uma coisa vinha subindo em vez de descer. Vinha da barriga. Atravessou o peito rasgando tudo em seu caminho. Subiu a garganta como caroço de abacate. O policial pensou ser vômito, mas era outra coisa pior. Tentou lutar contra elas. Uma tempestade formava-se atrás dos olhos. Lágrimas violentas irromperam pelo rosto. O policial mordeu o punho para conter os soluços. Vergou o corpo para frente como se lágrimas pesassem toneladas. E pesavam. O policial chorou. O rosto anônimo do rapaz acidentado um dia sorrira, dera risada, mas hoje era apenas uma carcaça destruída. Os lábios que um dia beijaram a esposa, hoje são comidos por vermes da terra. Os olhos que viam o mundo ainda como um lugar maravilhoso, hoje apodrecem no estômago de algum carcará maldoso. Os cabelos viscosos antes embelezados com gel, agora estão empapados de plasma sanguíneo. O policial chorava porque aquele rosto jamais receberia outra vez a carícia da mãe. O policial chorava porque as pernas estraçalhadas jamais correriam numa partida de futebol outra vez. O policial chorava porque aquele braço decepado na estrada jamais enlaçaria a cintura fina de uma amante. O policial tentava engolir aquele pranto inacabável, mas isso só o faria se afogar. Não acabaria. Vinte anos de farda e chutes na bunda. Dois anos de choros secretos no banheiro. Lágrimas covardes. Escarros da alma contra o corpo empedernido. Um choro copioso, em silêncio estrangulado, espasmos na barriga, chiado na garganta. O choro de um homem inexperiente com as lágrimas. Quantos outros cadáveres incompletos seriam suficientes para deixar-lo louco? Não dormia a quase duas semanas, pensando em todas as coisas terríveis que via durante seus dias de homem da lei. Estava rodeado de morte. Uma sina maldosa.

O policial ficou ereto. Deixou o olhar vaguear pela solidão do banheiro. Azulejos beges, a cada dois havia um desenho de um camponês colhendo café. Pisos brancos, com certa aparência de areia de praia. Tudo branco, pia, acento, Box de banho, gabinete. Tudo branco. O policial observou-se no espelho para apagar os resquícios de tristeza. Os olhos boiavam vermelhos em lágrimas não derramadas. Limpou o rosto com palmas de água. Não estava convincente. Lavou-se até parecer um homem saindo do banheiro após tirar água dos joelhos.

Querido, tudo bem? A esposa perguntou ao pé da porta.

Sim, o policial respondeu, lamentando a voz trêmula. Perguntou-se mentalmente onde estaria o homem forte e determinado que um dia vestira uma farda e jamais se abalou com nada. Assassinado em algum ponto do passado. E ultimamente ele tem sido assassinado várias vezes. Nada sobrara do homem que combatia o crime com punhos nórdicos. Nada. Está tudo bem, querida.

O policial voltou para a mesa e tentou jogar a comida para dentro.

O filho agora assistia TV, um filme de ação norte-americana.

O policial foi dormir. Em seu sono desfilavam uma alegoria de cadáveres incompletos e um rosto a observá-lo em plano de fundo.

Pela comunicação da viatura, o policial recebeu uma ocorrência braba...

Leo Ramos
Enviado por Leo Ramos em 17/11/2008
Código do texto: T1288471
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