Três Irmãs tão Diferentes

Três irmãs tão diferentes

Três irmãs tão diferentes: uma loira, outra ruiva e a terceira morena, filhas de mãe portuguesa e pai brasileiro, descendente de antigos escravos de fazendas sulistas.

Moravam na mesma casa, no mesmo bairro, na mesma cidadezinha pacata do interior.Tiveram uma infância normal, como pode ser uma infância eivada de preconceitos até entre as próprias meninas.A mana mais clara, Doralice, brigava com a mais escura, chamando-a de preta, de filha adotada, pegada no portão da igreja. A moreninha, Denise, chorava escondido e não tinha coragem de reclamar com ninguém, mas, em seu íntimo, culpava a mãe pela situação, pois adorava o pai. Não se pode esperar coerência de uma criança e por quê só a mãe teria responsabilidade na diferença de cor entre as garotas é um mistério ainda insolúvel.A irmã ruiva, Doralda, mantinha-se neutra.

Viveram, assim, muitos anos, sem que houvesse uma maior aproximação entre os membros daquela família. O preconceito expandia-se fora da casa, entre os amigos e coleguinhas que caçoavam de irmãs tão diferentes; Denise julgava-se injustiçada por ser a mais escura. Por que só ela era tão morena (nem consigo mesma conseguia falar a palavra), por que só ela tinha aquele cabelo “ruim” que tinha de alisar com ferro e sofrimento? Como gostaria de ser alva como Doralice que vivia passando protetor solar para não ficar queimada, e cujos cabelos eram lisos e claros! A mãe também tinha uma pele de pêssego, rosada, sem manchas, nem rugas. Ah! Como detestava a mãe e as irmãs, como gostaria de ter nascido em outra família, ou melhor, nem ter nascido! Como odiava aquela vila interiorana, tão cheia de não-me-toques e preconceitos. Como queria partir!

Logo que concluiu os estudos secundários, foi fazer faculdade na capital, arrumou emprego e livrou-se, ao mesmo tempo, da família e da tutela paterna. Labutou muito, na cidade grande, formou-se, conseguiu um bom emprego em sua área, enfim estava bem de vida.

Feliz? Não, porque, em seu coração abrigava o ódio, a raiva de ter sido desprezada, sentimentos destrutivos. Não gostava de se lembrar do passado, nem das pessoas que, no seu entendimento, a tinham feito sofrer. Pouco contacto com os familiares, apenas os via em casamentos e enterros. Nem a morte precoce do pai, aos 59 anos, vítima de sua dedicação a um doente que lhe transmitira um vírus letal, pudera reunir a família dispersa. Depois do enterro, despediu-se logo, não querendo saber se alguém ou mesmo a mãe dela necessitavam.

O tempo passou, Denise conheceu um rapaz e , como soe acontecer, apaixonou-se e não, não se casou, que nem se usa mais, foram morar juntos e foram absurda e tolamente felizes durante alguns anos. Vieram dois filhos, um casal de crianças lindas e sadias, com apenas dois anos de diferença entre eles, sendo o menino, Jonas, o mais velho moreno claro, de cabeleira ondulada (não pixaim!) e a menina, Janete, loira e clara como a avó e Doralice. Denise alegrou-se por ter filhos “brancos”.

De repente, o marido, ao ver-se sem emprego e com dificuldades para achar outro, achou foi o caminho do álcool e das drogas. Denise, mesmo com um bom ordenado, não conseguia sustentar a casa, além disso, o marido roubava-lhe dinheiro e cheques para o maldito vício. Começou a faltar comida naquele lar, outrora feliz, e, “onde falta pão, ninguém tem razão” como reza o dito popular, começaram as brigas, a princípio esparsas, depois constantes e, cada vez mais violentas. Denise começou a negligenciar o trabalho para poder cuidar dos filhos, porque teve de dispensar as duas empregadas. Seu cargo público e assegurado por concurso não lhe poderia ser tirado, porém suas faltas e atrasos reiterados prejudicavam seu desempenho, não lhe permitindo promoção e acarretando-lhe descontos no salário já insuficiente. A situação tornou-se pior, quando o infeliz (nem dizia mais o nome dele) se meteu com traficantes e endividou-se tremendamente. Viu-se acossada pelos bandidos que a ameaçavam e às crianças. O marido escafedera-se. Para se livrar das ameaças, Denise abandonou a casa, às escondidas e... Aonde iria? A quem recorrer?...

Nas horas de angústia lembrou-se de sua família, da mãe, das irmãs, da cidadezinha pacata que desprezara, mas que poderia ser o seu refúgio, da infância distante que via como tinha sido boa, tranqüila e feliz.

Agarrou os filhos e os poucos pertences que conseguira salvar e pegou o primeiro ônibus para aquele não mais fim-de-mundo, porém a salvação e embarcou rumo a uma nova experiência.Como a receberiam, se a recebessem? Se não, para aonde iria? O que faria? Onde abrigar os filhos inocentes?

Parecia interminável aquela viagem, as crianças choravam pedindo água, comida, colo, ou simplesmente cansadas da longa e forçada imobilidade.

Finalmente, chegaram!

A cidade não parecia mudada, conservava, ainda, os traços típicos de que se lembrava; a Rodoviária horrível prédio modernoso em nada combinando com a primitiva arquitetura colonial, a praça principal onde ficava a Igreja Matriz de Sta Teresinha, a rua do comércio agora ostentando o letreiro do Pão de Açúcar que substituiu os antigos armazéns e

quitandas, o velho cinema reformado porém ainda o único pois nem lá, naqueles longes, se poderia agüentar a concorrência com a televisão,o vídeo, o DVD e o computador.

Pegou o único táxi dali, não que a casa da mãe fosse longe, contudo havia muita bagagem mal-ajambrada e ela e as crianças estavam cansadas, famintas e com sono. Menos mal que o velho Tobias não a reconhecera, aquela moça outrora linda nos traços sofridos e enrugados de agora.

Era hora de telenovela e, com certeza, a mãe e as irmãs estariam assistindo a ela. Quase desistiu no medo de ser rechaçada. Aonde iria? Respirou fundo e tocou a campainha.

-Já vai, veio a resposta lá de dentro do casarão antigo. Arrastar de chinelos, chave girando na fechadura e...

A mãe surgiu diante deles, mais curva, com mechas de cabelos brancos saindo do lenço que ainda gostava de usar.

-Quem está aí? Não enxergo bem.

-Sou eu, mãe, Denise.

A velha senhora emocionou-se e, chorando, estendeu os braços magros para abraçá-la:

-Entrem, entrem, a casa é de vocês. Que alegria!

E para dentro:

_ Alice, Alda, sua irmã chegou! Nise está de volta!

Nenhuma palavra de censura, nenhum grito, só as lágrimas comovidas de emoção e saudade no rosto das três e no de Denise.

As crianças nada entendiam e protestavam por causa daqueles beijos molhados e dos apertos e abraços demasiado fortes.

Entraram e todas falavam ao mesmo tempo na felicidade daquele reencontro.

Lembraram-se das crianças e foram cuidar delas, alimentando-as e pondo-as para dormir no antigo quarto de Denise onde havia mais espaço e até uma bi-cama.

Depois, vieram as conversas, longas, dolorosas, entremeadas de lágrimas, beijos e abraços.

Depois, muito depois, em sua cama, Denise pensava “Eu fui procurar a felicidade lá fora, sem compreender que estava aqui, junto aos seres que me amam desinteressadamente e me apóiam ou me censuram visando apenas ao meu bem. O passado não volta e deve ficar sepulto, vamos esquecer as velhas mágoas cujas feridas há muito se fecharam sem deixar cicatrizes visíveis, vamos recomeçar, procurando não cometer os antigos erros. Que importa a cor da pele, que importa se uma é mais feia ou mais bonita que a outra? Preconceito, mesmo disfarçado, sempre existirá, cabe a cada um de nós saber lidar com isso e tentar mudar a cabeça das gerações vindouras. Vou dar início a uma nova jornada, apoiada pelos que, outrora, repudiei, vendo-os agora como meus verdadeiros amigos. O perdão das faltas virá com a continuação da vida e estreitamento dos laços afetivos. O caminho da redenção constitui o caminho do amor e da paciência”.

Magali Crescini
Enviado por Magali Crescini em 31/10/2008
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