Memórias de um Suicida

Ao olhar aquela foto, em preto e branco e já deteriorada pelo tempo, fiz uma viagem aos meus tempos áureos, de minha juventude, e por um instante esqueci da dor e das dificuldades que a vida agora me impunha. Austeros cabelos macios, fraca iluminação amarelada e casas de madeira, um aconchego que nunca mais vivi novamente. Naqueles tempos sim amávamos de verdade, não havia disfarces e éramos nós mesmos. A nossa única preocupação era viver e ser feliz, tempo nos transbordava. Uma sensação intraduzível em palavras escorria de meus olhos por aquele retrato velho como eu; então entrei naquele cômodo, com aquela mulher, que um dia foi minha esposa.

Deveras perdemos os pequenos gozos da vida. Eu aliás precocemente. Os homens aprenderam com seus erros e assim foram evoluindo. Tudo mudou, mas bobagem é pensar que podemos, com nossa vã filosofia, represar e doutrinar os velhos rios perenes, do bem e do mau, tão intrínsecos, os quais compõe a mente humana.

*

1946, era outono, trabalhava como escrivão de polícia e tínhamos tudo que ambicionávamos. Pelo menos eu. Chegara em casa na ânsia de sentir seu perfume e tocar seus longos e dourados cabelos, pobre diabo, ao adentrar o quarto e deparar-se com a cena mais lazara que pode haver na vida de um homem, que ama. Eu já não era mais o único. Apenas me recordo dos sentimentos e da conduta irracional, digna de um animal feroz e machucado quando os baleei.

Ao conversar com o policial, este - acreditem - tratou de me acalmar, e dando-me razão, disse que nada me aconteceria, visto que estava apenas defendendo minha moral, e isso naquele tempo era o que de mais valioso existia para um homem.

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Passei o resto da minha vida a me aterrorizar e me afogar em devaneios sem fim. Sempre soube que os homens não são, e nunca serão, capazes de julgar ninguém nesta terra, somos todos vis, e padecemos todos do mesmo mau.

Quando retornei da minha incursão à velha fotografia, me ocorreu que era hora de me julgar e devorar a angústia final e agonizante que já me açoitara há décadas. Encerro, depois de tanto tempo, minha história do mesmo modo que a comecei e junto me aos infelizes, para que possamos sofrer em paz.

Diogo César Guimarães
Enviado por Diogo César Guimarães em 27/10/2008
Código do texto: T1250466
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