FARINHA DE OUTRO SACO

A Rio–Bahia era ainda praticamente carroçável e só se encontrava o primeiro palmo de asfalto quando se entrava no estado do Rio. Naqueles idos de 60, eu viajava sozinho do Piauí a São Paulo, com meu caminhão Chevrolet 1963, novinho em folha. Dava pena botar um carro novo numa estrada tão velha!

Depois de vencer um atoleiro após outro, entrei na Bahia e parei o caminhão num desses postos que oferecem combustível para o veículo e ao motorista. Quando já estava na cabine para retomar à estrada, um garoto subiu no estribo e perguntou-me:

– Moço, pode me dar um bigu até Carrapichel?

– É você sozinho? – perguntei-lhe.

– É; é só eu e um boca-pio!

– Se esse boca-pio não morder, pode subir.

O garoto passou a mão num surranico e subiu na carga.

Fiz muitas amizades na estrada com meus irmãos caminhoneiros; fui empregado e, depois, patrão. Como empregado, procurei servir da melhor forma. Como empregador, tanto fui servido, como servi.

Guardo boa lembrança de meu motorista Wagner, um homem trabalhador, excelente profissional e de muito bom trato. Certa vez, comprei uma carrada de farinha em minha terra natal, Santo Antônio de Lisboa. Comprei e paguei como sendo de primeira qualidade, mas a que recebi era farinha de outro saco. No dia da entrega da mercadoria, não consegui um chapeado para ajudar-me; então, procurei os tios Zé Avelino e Pascoal Silva. Os dois punham as sacas em minha cabeça, e Wagner arrumava-as na carroceria. Eram 130 sacos de 60 quilos; portanto, 7.800 quilos contribuíram para achatar mais ainda minha cabeça nordestina e, de certa forma, podem ter ajudado nos problemas de coluna que, mais tarde, passei a sofrer. Enquanto isso, quatro robustos jovens perguntavam-me:

-Está cansado, João?

-Não deveria estar?! Estou quase acabando de carregar sozinho um caminhão!

- Viaja hoje ainda?

- Sim!

- Pode nos dar uma carona até o acampamento?

- Posso. Quando estiver saindo, darei umas buzinadas.

Meu motorista ouvira a conversa e disse-me:

- Você é doido ou besta demais. Esses rapazes já me perguntaram duas vezes se voltávamos hoje. Eu respondi que não sabia. Nenhum deles, no entanto, se ofereceu para rolar uma sacaria sequer.

Terminamos realmente exaustos. Para Wagner, também não foi fácil; arrumar uma carga não é simples. Tio Pascoal ofereceu-nos um quarto com duas redes em sua casa. Dormimos; às três da manhã, demos partida no caminhão. A lua estava clara. Rompemos o primeiro quilômetro de areia branca e solta, como farinha, e logo avistamos a estrada obstruída com pedras e galhos de mandacaru.

- É uma emboscada! – disse Wagner – Que faço?

- Pare o caminhão. Pegue o revólver e dê-me cobertura. Vou desobstruir a estrada.

- Eles podem estar escondidos na mata!

- Que nada! Isso é obra daqueles rapazes que nos pediram carona. Como resolvemos dormir...

- Vou descer. Só atire depois de ouvir o primeiro disparo feito por eles. Mas não acredito que ainda estejam aí. Tem mais balas no porta-luvas.

Desci com cautela. Fui afastando, um por um, os espinhos que o inimigo colocara em meu caminho. Ralei-me em pedras e furei as mãos em muitos cactos, pois, além dos visíveis, havia muitos enterrados.

Nosso objetivo era Feira de Santana, na Bahia; para isso, teríamos que percorrer 300 quilômetros de estrada carroçável. Entretanto, a partir de Petrolina, em Pernambuco, comecei a oferecer a mercadoria nos armazéns. Foi aí que fiz a descoberta: a farinha era de péssima qualidade! Também não consegui fazer negócio em Jacobina e em outras cidades à margem da rodovia em que parei para oferecer o produto. Em Feira de Santana, aconteceu o mesmo. Os clientes queriam escolher, e eu ficaria com o restolho para atirar aos porcos. Por último, resolvi vender a carga fechada por qualquer preço.

- Cidadão, já percorri a cidade inteira. Tenho uma carrada de farinha de péssima qualidade; talvez apenas 30% boa. Vendo pelo preço de custo, perdendo o frete, o imposto e meu trabalho. Está aqui a nota fiscal.

- Não quero nem olhar o produto. Nessas condições, fico com sua mercadoria toda.

Pagou-me em moeda corrente. Quando cheguei a Salvador, consegui carregar o caminhão com arame farpado e voltei ao Piauí.

As pessoas são como farinha: umas brancas, outras escuras; algumas grossas, outras mais finas; umas ideais para comporem nossa mesa e outras para serem atiradas aos porcos. É assim que vejo Wagner e o outro motorista que, mais tarde, veio a trabalhar comigo.

Para Wagner não tinha tempo ruim; para o outro, não havia tempo bom: tudo era difícil, tudo era impossível, porque nada fazia de boa-vontade. Foi com pesar que aceitei o pedido de demissão de meu companheiro de estrada, mas era o melhor para ele. Seu cunhado comprara um caminhão e oferecera-lhe para trabalhar com participação de lucros. Paguei legalmente todos os seus direitos e tive que procurar outro motorista. Então, disse-lhe: “Obrigado, amigo!” A melhor coisa da vida é quando duas pessoas sentem-se endividadas uma com a outra, porque nunca deixam de servir, nem se cansam de agradecer.

Tive prejuízo com a farinha, mas não podia deixar de trabalhar com aquele produto. Na época, ainda não se explorava a cajucultura, e os derivados de mandioca representavam a maior fonte de recursos gerados na microrregião de Picos.

LIMA,Adalberto; SILVA, Francisco de Assis.Fagulhas e Lampejos.