Correndo por fora
Sábado de manhã, sol ainda tímido, pedindo licença ao dia, Clésio bate palma no portão. Sonolento e sem vontade, Jobélio pousa a xícara de café na mesa e levanta-se para atender o dono das mãos que fazem aquele barulho chato tão cedo. Pensa ser algum vendedor, ou pregador religioso e quase desiste de chegar ao portão. Mas vai assim mesmo, a ruminar alguns impropérios.
- Bom dia! É aqui que tem um quarto para alugar? Pergunta Clésio.
- É aqui mesmo, responde Jobélio, recuperando o humor.
Depois de cinco minutos de conversa na calçada, o dono da casa convida o visitante para entrar, tomar café, conhecer o quarto e acertar os detalhes do aluguel. Duas xícaras de café e dois pães com margarina depois, entram em acordo sobre o aluguel.
O inquilino observa o local, na verdade são dois quartos, gosta e paga um mês adiantado a Jobélio, com a promessa de que se mudará no dia seguinte naquela mesma hora. Tem poucos pertences, apenas roupas, cama, cômoda, fogão de duas bocas, mesa pequena e uma furadeira elétrica.
- Se precisar de alguma coisa, eu te arrumo, promete o dono da casa.
Fazendo-se de desinteressado, Jobélio assegura ao inquilino que não tinha vontade de alugar os dois cômodos dos fundos, pois os usava para guardar bugigangas. No entanto, desempregado vários meses, a viver de bicos esporádicos, não havia alternativa. Precisa do dinheiro do aluguel.
Assim que Clésio dá as costas, Soleide, esposa de Jobélio, sai do quarto e pergunta ao marido sobre a visita. Jobélio responde ter arrumado uma pessoa para morar nos quartinhos dos fundos. Diz a Soleide que o homem lhe parece trabalhador e honesto, é prensista numa fábrica de geladeiras e separado recentemente da esposa.
Assim que Soleide deixa a cozinha para lavar roupas no tanque, no quintal, Jobélio separa parte do dinheiro recebido, pelo aluguel adiantado, e se encaminha para o boteco acertar suas contas. Paga os fiados, joga pif-paf e sinuca, toma cerveja e cachaça e deixa o local às seis e meia da noite, bêbado, movimentando-se como pêndulo de relógio.
Em casa, atira-se diretamente na cama como nadador na piscina, sem ao menos comer ou falar com a esposa. Acostumada com as bebedeiras do marido, Soleide faz que nada vê e continua a escolher o feijão na mesa. Na manhã seguinte, ela acorda Jobélio às sete horas e sente o cheiro da cachaça exalar por todos os poros do marido.
- O homem do quartinho está aí. Já chegou com a mudança.
Os pertences de Clésio couberam todos numa perua e foi fácil carregar tudo da calçada até os fundos do quintal.
À tarde, o inquilino resolve ir ao boteco tomar uma cerveja e se encontra com Jobélio. Bêbado, este pergunta ao outro sobre os motivos que o levaram à separação.
- Descobri que minha mulher tinha outro. Separei-me e não penso em me casar novamente, tão cedo, responde Clésio.
- Nossa senhora, isto é horrível. Ainda bem que tenho uma esposa super-honesta, que jamais irá me trair. Acredita?
- Claro que acredito seu Jobélio. Sua esposa é muito séria.
- Não senti muita firmeza no que falou. Acho que você duvida da fidelidade de minha mulher.
- Imagine, seu Jobélio. Jamais pensaria isto.
Tonto pelas cachaças, Jobélio acredita mesmo que o seu inquilino duvida de Soleide. Então propõe que Clésio comece a paquerá-la para provar a fidelidade da mulher. Clésio, que toma apenas uma lata de cerveja, percebe a insensatez de Jobélio e resolve cair fora.
Átson, o vizinho da frente, deixa a mesa do pif-paf, aproxima-se de Jobélio e o previne.
- Juba, meu amigo. Eu ouvi o que você falou. Deixe disso. Mulher merece respeito.
- Quem é você para dizer essas coisas? Não conhece nada de mulher. Nunca se casou. Acho até que é virgem até hoje.
- Tive namoradas, sim. Não me casei porque não apareceu ainda a oportunidade. Isto acontece sem a gente esperar.
- Vá...Não me encha o saco Átson. Mulher não é a sua praia.
Dois dias depois, o dono da casa bate a porta do quartinho e é convidado para entrar.
- Então, Clésio, já começou a paquerar minha mulher?
- Deus me livre seu Jobélio
- Não me chame de senhor. Temos a mesma idade.
- Tá bom. Jobélio, pare com isso. Respeito muito sua esposa.
- Eu sei que respeita. E até demais. Colabore comigo. Quero fazer um teste para ver se ela tem coragem de me trair, diz Jobélio.
O outro, surpreso com o rumo do assunto, repara que Jobélio, mesmo sóbrio no momento, insiste na proposta.
- Jobélio, vamos esquecer este assunto. Se você insistir terei de procurar outro quartinho no bairro.
- Calma, calma, Clésio. Você sabe que eu preciso do aluguel. Só queria que você soubesse que existe mulher honesta no mundo, como a Soleide.
No sábado seguinte, no boteco, Clésio encosta-se no balcão e pede sua cerveja. Jobélio, que joga dominó numa mesa ao lado, levanta-se e cumprimenta o seu inquilino. Conversam sobre amenidades até que Jobélio pergunta novamente se ele está paquerando Soleide. Clésio toma rapidamente o seu copo de cerveja e vai embora.
Átson se aproxima e novamente passa um sermão em Jobélio.
- Não faça isto Juba. Tenha mais respeito pela sua mulher. Não é assim que tratamos da esposa.
- De novo, meu? Você nem sabe o que é ter mulher. Taí solteirão da silva. Vai ficar mesmo pra titio. A mulher é minha e trato ela como quiser.
Jobélio chega em casa à noite e se estende no sofá. Soleide, que lava louça na pia, percebe a chegada do marido, mas faz que não. Então ele berra da sala.
-Soleide vem cá. Diga-me a verdade, o nosso inquilino está de olho em você?
- O que? Assusta-se a esposa
- É isto mesmo. Ele anda te paquerando, te assediando?
- Claro que não Jobélio, que bobagem. Mal vejo o coitado durante a semana. Ele sai cedo e volta tarde. Não arrume confusão com o homem, Jobélio. Nós dependemos do dinheiro do aluguel. Você está desempregado e meu trabalho de diarista rende muito pouco.
- Você seria capaz de me colocar chifres na cabeça? Questiona Jobélio
- Não. Apesar que você bem merece.
- O que você falou?
Aproveitando-se da bebedeira do marido, Soleide ressalva.
- Eu disse vê se ESQUECE desta história.
No dia seguinte, domingo, Jobélio entra no boteco às 10 horas da manhã e só deixa o local às sete da noite, depois de perder o que tinha no pif-paf. Chega em casa e não encontra a mulher. No quarto, nota que o guarda-roupa está aberto e há, dentro, pouquíssimas peças de Soleide. Ao lado, no chão, a mala, a única que têm, não está no lugar de sempre. Na cozinha, a pilha de louça já chama a atenção dos mosquitos. Não tem comida na geladeira nem fora.
- Ela me deixou, traidora, e foi com aquele bandido do inquilino.
Corre ao quartinho dos fundos, bate a porta e é atendido por Clésio, que ouve futebol no radinho de pilha. Nervoso, Jobélio pergunta da mulher, porém Clésio garante não ter a menor idéia.
- Não sei, Juba. Cheguei agora há pouco.
Desesperado, Jobélio vai à casa de Átson. Quem atende é o novo proprietário, que tinha comprado a residência e se mudado naquele mesmo dia.
- Eu vi o seu Átson hoje pela manhã. Ele pegou o dinheiro da venda da casa, suas roupas e disse que iria viajar.
Apontando para a casa de Jobélio, o homem arremata.
- Ele saiu de carro na companhia de uma mulher que mora naquela casa.