CAMILO FOI PARA PARIS

Em 1948, com 22 anos, Camilo era o mais competente mecânico de automóveis do subúrbio do Rio de Janeiro. A sua oficina ficava em Madureira e, de segunda a sábado, às 7 horas, era aberto o amplo portão, cujo peso distribuído sobre dez rolamentos duplos, permitia um correr suave sobre trilhos. Então, ele me dizia:

-- Um dia, Carvalhinho, a oficina progredirá tanto que este portão será pequeno para atender o entra e sai de carros.

Eu o ajudava comprando e fazendo encomendas de peças na loja do Fernando, dando recados e preparando as cartolinas brancas, onde anotava os serviços realizados nos automóveis com caracteres que apenas ele entendia. Para cada carro ele determinava o tamanho da cartolina e, também, o número de linhas a serem feitas a lápis e bem de leve. Eu caprichava nas cartolinas; às vezes, me mandava refazer algumas e eu percebia que era só para passar o tempo. À tarde, eu ia para a escola.

No fundo do terreno, havia um galpão suficiente para abrigar doze carros, as caixas de ferramentas e três latões de 200 litros para depósito de materiais inservíveis; ao lado, ficava o escritório e o banheiro. Um armário de madeira, no escritório, servia para guardar as peças novas e as fichas de cartolina.

Sem que, nem pra que, um mês depois da inauguração da oficina, o padrasto do Camilo veio com uma mesa de tampo arranhado, uma cadeira e um cinzeiro de bronze; chegava na oficina por volta das 9, fumava cachimbo o tempo todo e se retirava às 16 horas. Camilo não o suportava. Ver aquele homem, com 30 anos, sem fazer nada, era irritante e até mesmo uma provocação.

--Carvalhinho, não conheço um mecânico sequer que tenha ficado rico consertando automóveis!

Dizia isso, quase todos os dias, e passava a palma da mão suja de graxa na testa para tirar o suor.

O padrasto, entre baforadas de Half and Half , com um aceno de cabeça, demonstrava concordância. E da maneira que chegou sem pedir licença, também se retirou, uns dois anos depois, levando o cinzeiro no bolso.

Em 1950, novos galpões foram construídos para atender serviços de eletricidade, lanternagem e pintura. Fui promovido a ajudante de mecânico e fazia com prazer, muito compenetrado, o que ele , antes, não deixava: lavar com gasolina as peças que eram retiradas dos carros e depois secá-las com jatos de ar comprimido. Mas, ainda havia as cartolinas, que eu, agora, com 14 anos, preparava de mau humor, porque, afinal de contas, como ajudante de mecânico, estava na linha de frente e fichas de cartolina era trabalho manual com tesoura e régua, coisa para criança.

No dia 16 de julho, ele me levou ao Maracanã para assistir a decisão com o Uruguai. Foi a primeira vez que entrei num estádio de futebol e saí arrasado. Ele, bem mais:

-- O gol do Ghiggia foi a pior coisa que aconteceu ao Brasil, Carvalhinho; se houvesse, hoje, a técnica para o que tenho aqui dentro da minha cabeça, eu matava esse cara!

Não entendi, nem perguntei nada.

Os anos passaram e, em 1962, me tornei sócio da oficina. Os carros estrangeiros escasseavam e, nas ruas, os nacionais dominavam.

O que ganhávamos era dividido, depois de pagar as contas. Nossas testas estavam sempre sujas de graxa. Tinha dia que fechávamos às 22 horas.

-- Carvalhinho, não conheço um mecânico sequer que tenha ficado rico consertando automóveis!

Foi a hora de reestruturarmos a oficina: ficamos apenas com serviços de mecânica, como era no início, e admitimos quatro empregados.

O padrasto dele morreu em 88. O carro explodiu na estrada.

Chegou 1990 e o Camilo desistiu da mecânica. Aliás, há algum tempo que vinha desistindo; havia algo no ar...

-- Carvalhinho, vendi minha casa, vou para Paris. Tome conta da oficina.

-- Fazer o que em Paris?

-- Descansar, Carvalhinho. Morar em Paris. Ver o Louvre!

-- E sua mãe e seu irmão?

-- Eu volto, mas não agora!

Definitivamente, Camilo não estava bem de saúde ou, então, era uma brincadeira de mau gosto.

Mas em 10 dias, Camilo foi para Paris. Estava com 64 anos.

A caminho da sala de embarque, me gritou:

-- Carvalhinho, lembrei agora: o único mecânico que fica rico é o de Fórmula 1.

À noite, vi na TV que o avião em que ele tinha embarcado se espatifou no mar.

Dois dias depois, uma sexta-feira, recebi uma carta dele datada do dia do seu embarque, 21 de março. Não a abri de imediato, esperei até o domingo que sempre foi, para mim, um dia ameno:

“Carvalhinho,

Têm coisas que se conta para alguns; mas, como diz o meu irmão, têm coisas que se conta somente para você.

Lembra do meu padrasto, se é que posso chamar de padrasto aquele safado, que tomava o dinheiro da minha mãe pra fumar cachimbo, beber e jogar ? Pois bem, eu explodi o carro dele. Sempre tive essa ideia na minha cabeça, mas ainda não havia a mecatrônica. Graças à ela, em 1988, pude tornar realidade o meu invento que consiste em uma agulha oca de aço , com uma pequena carga explosiva, e um chip. Coloquei a agulha dentro do tanque de gasolina do carro dele, sem dificuldade, através da tela de proteção do bocal de enchimento.

Programei o chip para emitir o comando de explosão da agulha para mais 200 quilômetros do que marcava no hodômetro e o colei junto ao mesmo. Mas não é tão simples assim, porque o segredo do invento está na programação do chip, que é única.

Lembra do gol do Ghiggia? Naquela época, se já houvesse essa tecnologia, lhe juro que gastaria até o último centavo, iria ao Uruguai e mataria o Ghiggia... explosão sem pistas, dentro do carro.

Agora vem a novidade: em meados do ano passado, fui procurado por um homem que viveu alguns anos no Afeganistão, quando o país estava sob o domínio dos russos; numa mistura de português e espanhol, com pausas, buscando as palavras, me disse que, investigando a explosão e a quem pertencia o automóvel, seguindo pistas, muitas falsas, indo e voltando, perguntando aqui e ali, chegou até o meu endereço.

Sempre conversamos em minha casa e, no segundo encontro, me perguntou como consegui que o carro explodisse sem deixar vestígios de atentado. Não adiantava mentir: respondi que inventei um artefato, cuja concepção guardava na memória. Acreditou em mim, conversamos outras vezes e, no início deste ano, teve a confirmação de que o comandante dos mujahidin queria conhecer, em detalhes, o meu invento e por ele pagar um preço justo. Sem falsa modéstia, será que existe um preço justo para o meu invento? Também me pediu cópia de alguns documentos, inclusive o contrato social da oficina e algumas informações sobre você.

Em fevereiro, ele, já em Paris, mandou abrir uma conta em meu nome e depositou 500 mil dólares; não sei como foi feito, mas estou com o recibo do depósito.

De Paris, serei conduzido até Herat, no Afeganistão, para o encontro com o comandante.

Au revoir,

Camilo”

Não sei, mas até hoje esse "au revoir" está na minha cabeça. Estranho, tudo muito estranho.

A carta... Eu queimei.

Elysio Lugarinho Netto
Enviado por Elysio Lugarinho Netto em 22/10/2008
Reeditado em 27/07/2010
Código do texto: T1241751
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