VIAGEM PARA O CÉU COM ESCALA NO INFERNO

O estado do Piauí ainda hoje é mal-servido de linhas aéreas. Nos anos 60, era pior ainda, porque também não havia estradas asfaltadas. Gastavam-se oito dias para vencer os 2.500 quilômetros que separam Picos de São Paulo. Naqueles dias, descuidei um pouco, e meu estoque baixou demais. Por isso, precisava fazer a reposição com urgência. Então, tomei um avião, em Teresina, com destino a Belo Horizonte. Partimos às 8:30h e fizemos escala em várias cidades do Piauí, da Bahia e de Minas Gerais.

Sempre gostei de viajar na janela para apreciar a exuberância das florestas, a beleza das nuvens de algodão e para ver as cidades quando a aeronave não passava muito alto. Sobrevoando Salvador, algo me pareceu estranho: um movimento intenso de ambulâncias e do Corpo de Bombeiros. O avião taxiava em torno do aeroporto da Aeronáutica, em vez de preparar-se para descer num campo destinado a vôos comerciais.

Uma aeromoça anunciou que deveríamos continuar sobrevoando Salvador, por mais alguns minutos, por causa de um perigo iminente na pista; algo que logo seria resolvido. O sobrevôo durou, aproximadamente, meia hora; quando descemos, ficamos sabendo da pane no trem de pouso. Finalmente, com algumas horas de atraso, aterrissamos em Belo Horizonte. Daí em diante, completei a viagem de ônibus.

Passei o dia todo fazendo compras no centro de São Paulo e, à tardinha, retornei ao hotel. Meu apartamento era no primeiro andar e tinha janela virada para a rua. Além do cansaço, a cabeça doía. Reparei pela janela e vi uma farmácia defronte ao hotel. Peguei apenas a carteira de cédulas e desci para comprar um analgésico. Na porta, estava uma viatura da polícia com quatro pessoas dentro. Um senhor grisalho postou-se à minha frente.

- Seus documentos!

- Estou hospedado neste hotel e desci para comprar remédio. Os documentos ficaram em meu quarto, no primeiro andar. Posso pegá-los rapidamente.

Sem dar uma resposta à minha explicação, ele empurrou-me para o camburão. Fomos levados à Delegacia Central, e introduziram-nos a uma sala grande, com várias portas de acesso a outras menores. Em cada porta, havia o nome de um delegado. Três horas depois, anunciaram meu nome com a indicação da sala. Entrei. O delegado era o mesmo que me havia detido.

- Cadê seus documentos?

- Doutor, eu disse ao senhor que meus documentos estavam no hotel. Sou um comerciante de Picos e vim fazer compras em São Paulo. Tenho comigo um comprovante da passagem de avião, um recibo de transferência bancária e alguns pedaços da identidade velha.

- É essa sua identidade? Um retrato e uns fragmentos que mal dão para ver o nome?

- Não, senhor! Essa aí é a original. A segunda via ficou no hotel. Há menos de 10 horas, estive quase na porta do céu. O trem de pouso do teco-teco não descia. Sou católico e acredito que, ao morrermos, vamos para o céu ou para o inferno; uns passam pelo purgatório, outros vão direto, ou para a glória de Deus ou para a escuridão eterna. Estive quase nas mãos de São Pedro, e o senhor delegado me puxou para pagar penitência nesse purgatório. Qual o pecado que cometi?

- Você conversa demais. Tenho 29 anos de profissão e conheço quem é ou não um cidadão de bem...

Nem esperei que concluísse o raciocínio.

- O senhor, com essa experiência toda, ainda assim me trouxe para uma casa de correção?

- Você é bem desaforado! Escrivão, tome o depoimento dele!

O funcionário escreveu duas laudas, mas para tudo que perguntava minha resposta era “Sim” , “Não”, “Não sei nada”.

- Assine aqui e espere lá fora!

Um policial armado com uma metralhadora olhava-me como se quisesse arrancar uma confissão de crime. À meia-noite, o delegado saiu. O policial mal-encarado perguntou:

- Doutor, que faço com esse homem? Meto na gaiola?

- Você ainda está aqui?!

- Sim, senhor. O senhor mandou que eu aguardasse aqui fora.

- Pois vá embora!

- Mas o senhor ficou com meu recibo bancário, com uma via da passagem de avião e com os pedaços de minha identidade antiga.

Sem dizer nada, voltou; pegou os documentos e devolveu-me. Desci uma escada de damente trinta degraus e sentei-me nos últimos. O delegado passou por mim.

- Já lhe disse para ir embora.

- Não posso ir. Se, às seis horas da tarde, o senhor me prendeu na porta do hotel, porque eu estava sem documentos, que acontecerá se me pegarem na rua, a uma hora dessas?!

- Venha aqui.

Acompanhei-o até a calçada; ele fez parar um táxi e disse:

- Leve esse cidadão ao Hotel Presidente, no Brás.

LIMA, Adalberto; SILVA, Francisco de Assis.Fagulhas e Lampejos.