É Fogo...
O casal subiu pela rampa e se posicionou em frente ao estoque da loja de móveis. Ela, menina morena de olhos claros e belos cabelos longos. Bonita e dedicada na escola. Ele, rapaz de pele um pouco mais clara que a dela, olhos gateados e odiado pelos professores pelo seu comportamento indisciplinado. Na escola, todos se surpreendiam por uma menina tão bonita e educada estar namorando um rapaz como aquele.
Charles retirou a mochila das costas e dela uma garrafa plástica de álcool. Chacoalhou-a.
—Acho que tem álcool o bastante.
— O que você vai fazer com esse álcool?
— o que você acha?
— Não vai fazer o que estou pensando que vai?
— Junho é mês de fogueira. Não é?
—Você não deve fazer isto!
—Larga de ser mole Wélida! Dê uma olhada... Isso tudo queimando vai ser lindo.
Wélida olhou nos olhos do namorado, os quais brilharam ao olhar para aquele monte de móveis estocados naquela loja. Ele abriu um sorriso, pegou o álcool e despejou sobre um móvel antigo de mogno colocado do lado de fora e recostado na tela que servia para fechar o local. Ela tentou pará-lo, mas ele empurrou-a para longe. Após despejar todo o álcool, jogou a garrafa também, a qual caiu atrás do móvel.
— Seu tênis está desamarrado, Wélida. Falou Charles tão sério que parecia hipnotizado.
Wélida olhou para baixo, percebeu ser verdade e abaixou-se para amarrar o calçado. Enquanto isso, Charles pegou uma caixa de fósforos, retirou um palito e respirou fundo, como se sentisse um imenso prazer no que estava fazendo. Segurou a caixa com a mão esquerda e firmou um fósforo forçando-o na parte da pólvora contra a caixa com o polegar e com o dedo médio da mão direita deu-lhe um “peteleco” atirando o fósforo que incendiado foi arremessado em direção ao móvel encharcado com o líquido inflamável. Ouvindo o som e assustada com o clarão repentino, Wélida quase caiu para trás. Olhou para cima e ainda deu tempo para ver o fósforo aceso com seu lume amarelado atravessar pela frente da lua cheia. O tempo de viagem do palito durou menos de um segundo. Ambos olharam para a mesma direção e ao tocar do fósforo aceso, o móvel incendiou-se com chamas amareladas mescladas de tons azulados. Não havia mais retorno, a obra já estava sendo realizada. Seus olhos se fixaram nela e sentiram o calor aumentar tanto quanto aumentavam as chamas destruidoras. Charles sorriu, retirou do bolso um mp4, colocou os fones de ouvido, colocou o capuz, respirou fundo e dirigiu-se à namorada:
—Precisamos sair daqui. Falou sem apresentar nenhum sinal de arrependimento.
Virou-se e seguiu em direção à rampa, se distanciando do local. Ela pensou em tentar apagar o fogo de alguma forma, mas vendo-o se distanciar, o seguiu apressadamente como se fosse sua sombra. Atravessaram a avenida e desapareceram na noite. Já bem longe, olharam para trás; ele se vangloriou da altura alcançada pelas chamas e ela tremia de apavoramento por ter participado daquele ato. Ele abraçou e beijou-a prazerosamente, como se estivesse comemorando o acontecimento e ela apesar de tudo se entregou àquele beijo por inteira. Sem que percebessem, estavam sendo observados enquanto atearam fogo ao móvel por um vizinho que não fez questão de ser visto. O vizinho sabendo o telefone do proprietário avisou-o do acontecido e dos jovens incendiários. O proprietário telefonou para a polícia e a polícia para o corpo de bombeiros. Logo, os bombeiros chegaram e tiveram dificuldades para se aproximar da loja, por causa do aglomerado de carros e pessoas curiosas ao redor. Fizeram de tudo para apagar o incêndio, mas não foi possível... Nada restou. Tarde da noite, todos se foram e no meio das cinzas, ainda, subiam filetes de fumaça que seguiam sinuosamente buscando o firmamento. Tudo destruído. Em frente aos destroços, o proprietário, desolado e sozinho, ruminava o porquê teriam feito aquilo. Pela descrição, sabia quem era o jovem, porém denunciá-lo poderia ser perigoso, pois era menor e logo estaria na rua novamente. Olhando para aquela obra maldosa, repassou os sonhos do passado; os primeiros móveis antigos que comprara para revender... A montagem da loja. Retirou uma foto da carteira, olhou para ela e reviu-a cheia de móveis. Passados alguns minutos, entrou no carro, ligou-o e dirigiu-se para casa. No meio do caminho, passou pelo casal que se beijava apertadamente em uma esquina da avenida. Parou, teve vontade até de atropelá-los, chorou muito, pensou nas possíveis conseqüências e preferiu a liberdade com as pessoas que amava.
Dias depois, quem passou por lá viu a casa ser demolida para ser reconstruída.