Outros Quintais

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Devia haver crianças naquela rua sem-graça, mas eu ficava imaginando como e com o que elas poderiam brincar, por causa do pouco espaço, do pouco verde, da pouca terra e por causa, também, dos tantos fios de alta tensão que atravessavam a vila formando uma imensa rede, fechada, feia, perigosa, e que impedia o bom brinquedo de soltar as pipas coloridas que meu avô sabia fazer tão bem. Nós dois costumávamos passar horas pelas campinas verdes lá, de onde vínhamos. Era um lugar tão lindo, limpo e aberto que a gente podia se esquecer de tudo, inclusive que iria crescer um dia e, no caso de vovô, que já havia crescido e estava já até encolhendo, como dizia minha avó, quando ralhava com ele.
Mas agora, ali, naquela rua...eu não sabia...nem podia imaginar o que as crianças faziam quando não tinham deveres da escola ou a função de ajudar as mães em um serviço ou outro, dentro de casa. Afinal, onde estávamos? Por que tínhamos vindo parar ali, no lugar estranho e sem-graça, cujo nome era um número escrito em cinza sobre a placa preta?
Vovô não ficaria nada contente quando chegasse e desse com aquele cenário frio e sem cor. Mesmo assim, eu o aguardava com ansiedade, pois talvez ele – se houvesse alguém este seria apenas ele – a me explicar o que estava acontecendo e por que meus pais haviam escolhido sair das campinas, para lá daquele planalto, onde vivíamos numa casa com um quintal que virava um mundo mágico, tais eram os brinquedos e as histórias que inventávamos.
Já fazia tempo que eu estava ali, à espera. Ninguém aparecia. Eu via apenas os homens que descarregavam alguns móveis do caminhão estacionado em frente à casa pintada de cinza e os levavam para dentro dela. Eram sisudos e calados, vestiam uns macacões esquisitos, de um azul que já ficara “russo” – era assim que vovó definia a velha japona de nylon que vovô usava quando chovia e ele insistia em ficar fora de casa para terminar algo para o que havia estipulado uma data certa. Era sagrado. Acabava no prazo que ele mesmo se dera.
Por que vovô não chegava? Ao menos ele, deveria estar por ali. Eu nem sequer me lembrava como eu chegara! Minha mãe havia dito alguma coisa quando se despedira de mim na noite anterior, ao sair do meu quarto, mas eu não conseguia lembrar exatamente o quê. Papai estava viajando já fazia algum tempo, ainda não devia estar para voltar. Vovó...vovó a esta hora deveria estar por ali, tomando conta de tudo e cuidando para que aqueles homens mal-encarados não estragassem nenhum móvel ou quebrassem alguma louça. Por que então ela não estava?
Eu já estava ficando muito preocupado e, devo admitir, com medo. As casas daquela rua eram todas iguais, pareciam frias, estranhas carrancas de concreto sem jardim e sem vida interior. As poucas pessoas que eu via, à distância, entravam ou saíam como quem nem mesmo soubesse o que estava fazendo: havia uma espécie de distração nos olhos delas e seus ombros estavam arcados; a maioria delas franzia o cenho e ganhavam com isso uma expressão ainda mais alheia. Pensei que pareciam pessoas viradas pelo lado avesso. Tal pensamento me fez estremecer. Será que o mundo estava do lado avesso? Ou, ainda, eu estaria do lado avesso do mundo?
Tive que me sentar no meio-fio, porque minhas pernas tremiam um pouco. O bueiro, perto, fedia. Era o mesmo cheiro que eu já sentira quando estava chegando neste novo lugar-que-eu-nem-sabia-onde-era. Esgoto.
Olhei de novo para o alto e dei novamente com os fios de alta tensão. Nos telhados retos das casas iguais, antenas de vários tipos. O céu, acima de uma camada espessa de algo que parecia fumaça – que, no entanto, não cheirava a queimada - , até que podia estar azul, mas eu não conseguia distinguir. Não havia, em nada uma cor definida além do cinza, cinza. Na pintura das casas, no metal das antenas, no pára-choque do caminhão. E aquele azul “russo” na roupa dos homens que, àquela altura, já haviam acabado de deixar todos os móveis e as caixas dentro da casa. Na casa onde não havia ninguém.
Os carregadores olharam para mim com certo desdém. Se é que eu entendia o que era isso, porque vivera até então rodeado de pessoas que tinham sensações e sentimentos bastante claros e transparentes, já que os expressavam sem mais. Afinal, o que poderia impedir alguém de ser o que é?
Por isso, não sei como reconheci o desdém naqueles homens. Nada disseram. Nem precisavam. Quando ouvi o barulho do arranque do motor, apesar de tudo, senti-me ainda mais sozinho e irremediavelmente longe de meu antigo lar. O caminhão desapareceu na esquina e as primeiras luzes da rua se acenderam. Eram brancas. Muito diferentes das que tínhamos lá, na Campina, que eram amarelas e esmaecidas. Elas até pareciam abraçar a gente com a chegada da noite.
Entrei na casa, onde as caixas estavam a um canto e os móveis estavam entulhados em apenas um cômodo. Eram poucos e eu não os reconhecia. Onde estava a mesa de imbuia em que mamãe passava óleo de peroba e o guarda-comida com as cortininhas em xadrez de vovó? Ah...daria tudo para que ele estivesse ali e, ainda por cima, recheado com os doces de batata-doce que só ela sabia fazer tão saborosos!
O silêncio de todo o lugar era intenso e eu escutava apenas meu coração batendo forte, forçando meu peito.
Ninguém dos meus chegava. Por que eu estava ali sozinho? Mamãe permitira isso de que jeito? Eu jamais havia ido muito longe sozinho, quando estava fora de Campina, como em Graúna, aonde íamos comprar alguma coisa naquele mercado grande e sortido de frutas cristalizadas. Ah! Os figos! Ah...os cajus! De novo, a fome, o buraco no estômago. Vazio, vazio. Quando eu comera pela última vez? Tudo de que me lembrava era a caneca de leite quente com o pau de canela que mamãe trouxera ao quarto na noite anterior. Delicioso, cheiroso. Aquilo me fazia dormir tão bem...
Enfim...eu não tinha permissão para ir muito longe sozinho, a menos que estivesse em Campina, que eu virava e revirava, pois conhecia cada canto daquela cidade que sentia como se fosse minha. Minha no sentido de propriedade mesmo. Então, o que eu estava fazendo ali, tão só?
Não havia nada que me explicasse ou que fizesse algum sentido. Eu já sentia falta de tudo e de todos. E meu peito se apertava tanto quanto meu estômago.
Pela janela, olhava para rua novamente. Era hora de as crianças, depois da “janta”, estarem jogando caçador ou futebol, com bola “de verdade” ou de meia; brincando de pega-pega ou de “mãe” ou de outro folguedo qualquer...mas rindo e falando e vivendo. Entretanto, a rua continuava morta e amortecida, fria e muda, iluminada por aquelas luzes esbranquiçadas, fortes, geladas como a noite, que já descera por inteiro.
Eu me afastei da janela que dava para a frente, para a rua e tive a idéia de ir ver lá atrás, e olhar o quintal. Poderia haver uma árvore, lá. Um pé de laranja, maçã, pêra, até caju, quem sabe? Quem sabe uma goiabeira daquelas cujos galhos subiam em formato de forquilha, onde a gente pode sentar e comer as goiabas vermelhas por dentro, tão cheirosas e saborosas...
Fui, passos apressados, rumo à porta dos fundos. Quando a abri, dei com um espaço pequeno, talvez uns dois metros adiante de onde eu estava e, para os lados, uns três metros. Calçado. Cimentado. Fechado por um muro imenso de concreto, cinza. Lá em cima, o céu sem estrelas me dizia da esperança perdida. Nenhuma plantinha sequer. Aquela casa, não tinha um quintal, assim como não tinha jardim. O jardim eu podia até dispensar, mas...o quintal? Nenhuma árvore para subir? E, depois, como o Sansão se viraria naquele cubículo todo calçado? Logo nosso vira-lata, que estava acostumado a correr livre e brincar conosco e que eu e vovô estávamos ensinando até a pescar? Como ele se sentiria ali? Preso, é claro...sem espaço... eu estava indignado, pois aquilo já era demais!
Nosso quintal em Campina era forrado de árvores e havia a horta, com cenouras, rabanetes, beterrabas, couves...havia mandioca e outros tubérculos...havia verde e terra negra, cheirosa e úmida...havia minhocas que eu juntava na lata para ir ao ribeirão, para as nossas pescarias incríveis!
E ali, na casa sem-graça da rua sem-graça, não havia flores e frutos e verduras e legumes... nem bichos nem crianças. O céu não tinha estrelas e vinha um cheiro muito ruim dos bueiros. Ah! Eu me lembrava agora: havia um grande rio que cheirava daquele mesmo jeito. Eu havia passado por ele. Não sei como, não sei quando, nem sei por quê.
Fiquei parado, olhos estatelados no muro que fechava a possibilidade de qualquer quintal vicejar para mim, ali. E, do mesmo jeito, eu já perdia a esperança de que vovô e vovó chegassem. Eles costumavam dormir muito cedo, porque se levantavam com o nascer do sol, e já devia ser mais de dez horas. Deviam estar em Campina, na casa onde o quarto eles cheirava a pinho e a lavanda. Minha mãe...ela pelo menos poderia ter vindo, já. Como estava me deixando até aquelas horas ali, sozinho?
Eu nada sabia, pois tudo era uma grande confusão em minha mente. De líquido e certo, apenas a fome e o medo era o que eu tinha.
Por mais que eu perguntasse, gritando por dentro, alguma coisa me impedia de desesperar. Talvez tudo não passasse de um grande jogo, de uma grande brinquedo que logo, por certo, acabaria e eu poderia me fartar com um bom lanche, logo depois de um banho na banheira de lata que vovô fizera e ficara tão bem no banheiro grande da nossa casa...
Com essa esperança, continuei a explorar o local. Escalei a parte lateral do grande muro. Queria saber o que havia por ali. Quando cheguei ao topo, deparei com a casa ao lado, que possuía o mesmo tipo de quintal – ou nenhum quintal -. A porta dos fundos estava aberta, assim como a janela do que deveria ser um quarto. De lá, vinha um ruído estranho, algo metálico, belicoso. Era como armas disparando sem cessar, mais ou menos como havia naqueles filmes que papai me levara a assistir no Cine Metro, em Valadares. Como era mesmo o nome??? Flash Gordon...talvez, não importava agora. O que interessava era o barulho intenso, uma seqüência incansável do mesmo som.
Foi então que vi o rosto iluminado por uma luz clara do que parecia ser uma caixa para a qual os olhos do menino olhavam sem piscar, enquanto suas mãos se ocupavam de uma ferramenta estranhamente arrastada para frente e para trás, para um lado e para o outro, sobre a mesa onde estava disposta a caixa que, na certa, era uma máquina.
Eu me aproximei o quanto pude, queria ver mais. O menino continuava sem expressão, olhos fixos na máquina que emanava a luz e mantinha seus movimentos mecânicos com as mãos. Entortei todo o corpo, para ver para o que ele olhava com tanto interesse, o que ele fazia, afinal; consegui ver, sem ser notado, a princípio, as imagens que se moviam dentro da tal caixa. Eram soldadinhos ou algo assim. Como estavam lá dentro, eu não sei. Havia cores bonitas e eram muitos, os quais pareciam lutar entre si. Custei um pouco a perceber que, na verdade, era o menino de rosto pálido que os comandava, movimentando aquela estranha ferramenta que ele não largava e que manuseava com agilidade e precisão.
Daquele instante até o momento em que o menino finalmente se deu conta de minha presença observadora, já iam várias horas, penso eu, porque havia um vento frio e a umidade do sereno; além disso, meu estômago já roncava e doía de tanta fome que eu sentia. O olhar assustado dele, porém, me fez cair sem jeito e esfolar meus dois joelhos, no calçamento áspero.
Doía, mas meu fascínio pela figura do garoto era mais intenso: era magro, muito pálido, seu olhar era ágil, esperto, mas, naquele instante, estava embasbacado diante dos arranhões que via em meus joelhos, que sangravam, mesmo que pouco. Ele,também, vestia-se de um jeito engraçado: usava tênis, assim como eu, mas eram estranho, grande e coloridos, com solado grosso, exagerado em comparação aos meus, calçados feitos de lona, confortáveis e que me garantiam movimentos livres e a facilidade de tirá-los assim que quisesse mergulhar no rio, o que poderia acontecer a qualquer momento dos meus dias.
Como eu estava em cima do muro, tão alto? Eu poderia me machucar feio! Como eu conseguira escalar? O que eu fazia ali? O que havia acontecido com os meus joelhos e o que eram aquelas marcas próximas ao machucado recente? Como eu tinha aquelas marcas todas? Que roupa era aquela que eu vestia? De onde eu viera?
O menino me bombardeava com uma série de perguntas e eu nem tinha tempo de perguntar-lhe coisa alguma.
Daí por diante, nem me lembro como começamos a conversar “normalmente” e a contar um ao outro quem éramos e o que fazíamos – sem com isso estranharmos o fato de mais ninguém notar que estávamos ali.
Ele trouxe um saco de pipocas que abriu na minha frente, depois de colocar um pacotinho achatado dentro de uma caixa mais ou menos pequena que fazia um barulho zunido. O pacote foi inflando enquanto uma espécie de prato lá dentro o fazia girar, girar. O gosto era bom, mesmo que não fosse como as pipocas amanteigadas que vovó costumava fazer com aquele milho que ela deixava secar depois de escolher com tanto esmero. Às vezes ela fazia com chocolate ou carameladas...eram deliciosas e eu me fartava delas.
Ali tudo era muito estranho mesmo. Ninguém se incomodara em mexer o milho. Ele apenas espocara dentro daquele cartucho que estivera dentro da tal máquina cujo apito me irritara, até. Que lugar!
Meu novo amigo me observava e comentou que eu tinha cor nas faces e as mãos “grossas”. Eu disse a ele que vivia me machucando brincando de índio e mocinho ou subindo em árvores para pegar frutos ou brincar que estava em torres de observação ou, ainda, as duas coisas. Ele não podia acreditar, pelo que eu pude perceber. Quando contei dos balões e das pipas, então, ele quis saber de tudo...o que eram, como eram, que graça tinha...
Em contrapartida, ele me contou sobre o que ele chamava de games – acho que é isso- naquela caixa que aprendi se chamar de computador.
Falei de quintais e joelhos esfolados; de lambaris pulando no samburá mergulhado no ribeirão, em pescarias, do mesmo jeito que mergulhávamos as garrafas de vidro das “gasosas”, como as de gengibre, de que vovô sempre gostou mais – e eu também. Assim, a bebida se mantinha fresca - quase gelada. Ah...a água o ribeirão que atravessa Campina! O cheiro das árvores da margem e o trajeto de água cristalina serpenteando até se perder de vista.
Falei de novo sobre pipas e balões, os quais contávamos deitados de costas no gramado de uma parte do nosso quintal que mamãe e vovó usavam para “quarar” roupas nos dias de sol.
Falei das vacas que davam leite quente e doce lá na chácara leiteira, para os lados do Morro Azul. Falei do galo “Mascote”, que nos acordava todas as manhãs e que ninguém tinha coragem de sacrificar, pois era bichinho amigo.
Falei tanto e ele ficava tão admirado! Parecia sonhar com tudo o que eu dizia e eu comecei a me dar conta de que, realmente, vivíamos em mundos muito, muito distantes.
Contei da casa da árvore no quintal. Contei que ficávamos por lá, por horas, meus amigos e eu, e até dormíamos lá, quando mamãe deixava.
E falei de estrelas cadentes, das constelações cujos nomes papai me ensinava, enquanto contava histórias sobre como elas haviam recebido tais nomes.
Contei das festas de São João, quando todos se reuniam para fazer bandeirinhas e escolher as madeiras para uma imensa fogueira. Noites frias e claras e danças e comilança sem fim.
Falei de Sansão e do que ele comia : a polenta de fubá branco com torresmo para fortalecer o cão e deixar seus pêlos brilhantes. E ele adorava.
O menino sorria e seus olhos brilhavam. Jamais nadara em um rio. Muito menos bebera a água de um olho d’água ou de uma bica ou bebera o leite tirado na hora.
Jamais estivera no que eu conhecia como quintal.
O quintal dele era aquela caixa cujas imagens ele controlava em movimentos que o deixavam dolorido ou amortecido. Pessoinhas lá dentro, que não existiam fora dali. Amigos que não estavam com ele em pescarias, em jogos, em brincadeiras nas quais podiam sujar-se de terra preta e úmida e cheirosa.
Naquele quintal, ele jamais comera uma fruta do pé. Tampouco se machucara ou se deitara a contar estrelas e balões.
O avô , ele se lembrava agora, estava morando numa casa que a mãe chamava de “ casa de repouso” que ficava muito longe dali. Na verdade, ele não se sentia bem na presença do homem mais velho. Não gostava do cheiro dele e daquela mania que ele tinha de “contar histórias sobre a própria vida”. Não tinha paciência, preferia jogar seus games.
A avó era muito chata e a mãe não suportava quando ela chegava por ali. Segundo ela, contou-me o menino, a avó acreditava que entendia de tudo e vivia implicando com o jeito que a filha estava criando o neto.
A mãe trabalhava muito e estava em casa apenas um dia por semana, o domingo. Ela não trabalhava aos sábados, mas passava esses dias no salão de beleza, em clínicas de estética e depilação. Estava, na verdade, sempre muito ocupada para dar ao filho um tempo de sossego e proximidade, em que ele pudesse descansar na segurança que vinha dela.
O pai...bem...o pai saíra de casa havia algum tempo e telefonava de vez em quando. O menino me disse que nem sabia o que dizer quando conversavam, pois eles haviam perdido o assunto. Quase nem se conheciam mais.
As coisas que ouvi me deixaram triste. Como triste me parecia o menino.
A pipoca acabou. Havíamos dividido muito mais do que aquele saco de pipocas amanteigadas artificialmente – foi como o menino se referiu ao sabor delas. Havíamos dividido nossos quintais.
Ele amassou o saco de papel e arremessou-o para o cesto de lixo. Antes de cair, o cartucho esbarrou em um calendário que estava em cima da escrivaninha. Eu me adiantei para juntá-lo e qual não foi meu assombro ao ver de que ano ele era. Alguma coisa estava muito errada ou muito certa, a ponto de me explicar todas as questões que estiveram me incomodando desde que eu me vira sozinho naquele lugar: tratava-se de um ano muito a frente do ano em que eu vivia em Campina!
Eu não seria um menino, se fosse de fato aquele ano. Eu seria muito, muito velho.
Então, de repente, enquanto olhávamos estarrecidos um para o outro diante da revelação que eu deixara escapar em um quase grito, entendemos: eu viera de um tempo diferente; viajara no tempo e não apenas no espaço.
Por alguns momentos a mais, ainda falamos. Tínhamos pressa, no entanto, pois parecíamos saber que não nos restava muito mais tempo dentro do tempo, o qual já fora adiantado, rasgado, para nos encontrarmos ali.
Falei que ele precisava entender de quintais, sim, e sentir o sol em seu rosto e comer uma fruta do pé. Eu, dizendo aquilo, me senti muito sábio, muito antigo, muito velho.
Por isso, toquei no ombro do menino e olhei demoradamente nos olhos dele, como se quisesse guardar a imagem pálida, porém maravilhada de meu novo amigo. Um gesto que não conhecia a razão, que era natural e seguia impulso. Assim como o conselho:
- Pergunte a seu avô. Deixe que ele lhe conte.

Senti que a casa se movia e algo me afastava do menino, do muro, daquele quintal de cimento. Era uma roda que me tomava e girava, girava, como um doido carrossel. Até que eu passei por um espelho, ou um espelho passou por mim.
O reflexo, não era o de uma criança. Quem eu vi foi um velho. O mesmo rosto enrugado, mas de olhos ternos e vivos como os meus, que eu vira naquele porta-retrato, na cabeceira da cama do menino. O espelho refletia a minha imagem. E a minha imagem era a do avô daquele menino...
O menino que morava a muitos quintais de distância de mim. Lá...no tempo em que os meus quintais não passariam de uma história cansativa e incompreensível para ele.
Porque, então, já seria o tempo de outros quintais, os que não têm árvores e terra preta, úmida e cheirosa. Quintais de um tempo sem o gosto das frutas cristalizadas do mercado grande e colorido; sem o doce de batata-doce. Quintais dos soldadinhos e amigos virtuais, que vivem dentro da caixa estranha, que é máquina fria, confusa; dos soldadinhos que jamais brincarão ou dormirão conosco numa casa de árvore, nas noites passadas sob as estrelas que já podem ser apenas luz e lembrança do próprio céu, porque já estão apagadas há muito, muito tempo.


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 imagem: Judy Mesquita