Santa Cecília
“Qual cisne branco que em noite de lua....
Zona boêmia lembra sempre a alguns gente de má fama e mulheres de reputação terrível, mas nem Jesus as amaldiçoou e, na minha história, zona lembra muito folclore porque, segundo os antigos, existia na zona, lugar aonde nunca fui, uma senhora que atendia por caderneta. Só que a caderneta dela, minha gente, era escrita na parede. Ela fazia fiado e, é claro, que não vou declinar os nomes dos figurões que, na década de cinqüenta e sessenta, segundo me contaram andaram pela casa da Maria da Aurora que, além do mais, iniciava os rapazes nos mistérios do amor.
“Vai deslizando num lago azul...”
Tudo isso, porém, é pretexto para eu entrar noutro assunto, porque, na verdade, quero contar é a história da Lira Santa Cecília, da banda que alegou a minha infância e onde, com galhardia, conto que meu pai tocava. Era a Lira ou a Banda Santa Cecília que ilustrava todos os eventos socioculturais e políticos da época. Fosse o Dr. Lalu ou o Dr. Luís Fernandes, ou o Dr. Sebastião ou o Dr. Fábio Botelho Notini, prefeitos, lá estava a banda com seu uniforme e a elegância de seus membros.
“O meu navio também flutua...”
A coincidência é que a sede da Banda Santa Cecília ficava ali, no final da Avenida 21 de Abril, esquina com a Rua Coronel João Notini, a poucos quarteirões da minha casa, na prosaica cidadezinha de Divinópolis e, todas as noites em que havia ensaio, meu pai, Arlindo Bigode, que era membro da banda, músico que tocava piston, violão, cavaquinho, teclados, me levava e eu era o xodó dos músicos que me colocavam para virar as partituras para eles. Quem regia a banda era o Maestro João Pinto que não saía lá de casa.
“Nos verdes mares de Norte a Sul...”
Sô João Pinto, não sei por que cargas d´água tinha um dedo endurecido e, portanto, estava sempre pronto para reger com aquela sua batuta natural e era uma pessoa encantadora. Os músicos eram um tantão e, com a ajuda do meu irmão Edgar, puxo pela memória os nomes deles: Anquísio, José Egídio, José Batista, Antero Lopes, Ildeu, Isquel, José Onésimo de Andrade e Silva (Zé Bola), Ailton, Quim, Toninho, Pedro Bazan, José Siqueira, Telinho, José Alves, Zé Pinto, Marcondes, João do Baixo, Tonho Jumba, Sô Osvaldo, Hebinho Carvalho, Juca Corsino, Nico Sanches, Vavá e, se algum deles não foi lembrado aqui, que me perdoem o lapso de memória.
“Linda galera que em noite apagada...”
Eu era muito pequeno das pernas, mas ainda tenho uma visão neblinada das apresentações da Banda Santa Cecília no antigo coreto da Praça Benjamim Constant que, popularmente, era conhecida como Pracinha da Estação. Vagamente, escuto acordes de “Luar do Sertão”, “Saudades de Matão”, “Branca” e outras melodias que, com primor, os músicos executavam para ouvidos seletos dos namorados que, por ali, fazia o footing.
“Vai navegando num mar intenso...”
Em dia de desfile, aniversário da cidade, datas cívicas, o povo entrava em delírio quando a Santa Cecília executava os seus dobrados “Batista de Melo”, “Dois corações”, “Canção do soldado”, “Tenente Caseira”. Os pés dos adultos mesmo sem querer querendo dançavam e a meninada ficava com os olhos de fogo, as orelhas empinadas diante de tamanha carícia auditiva.
“Nos traz saudades da terra amada...”
Muita gente era fã incondicional da banda e amigo íntimo dos músicos. Ainda me lembro da alegria do Totonho Machado, Sô Clarismundo do Pereira, Alvimar Mourão, Arízio Diogo, Chiquinho Teodoro e de sua filha Edite Silva, hoje escritora, Zé Capitão, Ataliba Lago, Petrônio Bax, Rosenwald Hudson de Oliveira, Sô Sales, Otto Mourão, Nico Franco, Sô Santinhos, Guilherme Sanches, Jacinto Guimarães, Teodosino, Tonikinho, Salym Aires da Silva. Eles estavam sempre em contato com os músicos e, além deles, os frades e os padres também solicitavam a Santa Cecília para ilustrar os atos religiosos. Procissão sem banda não tinha graça. Jesus morto era, solenemente, acompanhado pela banda que tocava músicas que faziam os fiéis chorar.
“Da pátria minha em que tanto penso...”
E nas festas!... toda festa ganhava nobreza. Casamento solene contratava a banda para, na porta, cumprimentar os noivos. E os músicos da Banda Santa Cecília eram excelentes, porque ninguém tocava de ouvido. Todos sabiam música, não era como hoje quando, infelizmente, muita gente se atreve a dizer-se músico e não sabe ler uma pauta sequer. Os meninos todos amigos do meu pai sabiam música e ser músico de uma banda era sinal de nobreza e, para mim, sempre será. Tenho dó de quem discrimina qualquer manifestação artística. Pobre material é desculpável, mas de espírito a gente lamenta e profunda. Ah, que saudades da Banda Santa Cecília que dourou a minha infância, quantas saudades!
*** Conto publicado no livro “Dois dedos de prosa... nas entrelinhas dos versos”, de Edson Gonçalves Ferreira – Edição esgotada.