Sonho versus pesadelo
Acabar com a dor. Ter a ferida no braço e rezar aos céus para que o sangue deixe de correr, para que não se dê uma razia. Uma hecatombe, palavra pesada que lembra um elefante a estatelar-se no chão poeirento. A bomba no céu que se vai deixando cair, cair, cair cada vez mais, até tornar inevitável a destruição de um indivíduo, de uma aldeia, de uma cidade. O homem que se vai deitar com uma granada no bolso das calças do pijama, que beija a mulher e diz boa noite, até amanhã, e que sabe que o amanhã não chegará nunca porque há a bomba, a granada, a ferida, os pêlos chamuscados, a pele rasgada, as vísceras de fora, o osso descarnado, a destruição. A criança que não dormiu de noite porque pensa na rapariga bonita e que sofre, que sente um aperto na barriga, na garganta, por ter perfeita consciência de que não a beijará, de que nunca a apertará nos seus braços, que tudo pertence ao domínio do sonho. Tudo pertence ao domínio do sonho: «Bem-vindo ao meu reino. Sê feliz, procria, enriquece, trabalha, dorme, fornica, descansa, sorri, abraça a mãe e o pai, almoça com os amigos, passeia com a namorada. Acorda. Acaba com tudo.» Sonhar é como estar num futuro ideal mas ao mesmo tempo não estar, não tocar, não sentir. É cheirar o perfume da mulher sem tactear. A velha que sonha com o passado que não teve, com os filhos e os netos que não nasceram. O não ter uma descendência para a frente nem para trás, não ter um pai nem um filho. Ser só, peão isolado na longa estrada que leva ao desaparecimento. Ser isolado e ver uma mulher a passar na rua. Sentir paixão no peito. Agarrá-la pelas pernas e lambê-la, encostá-la à parede e dizer: «Casa-te comigo, foge comigo, vem comigo.» E ele não querer casar, não querer fugir, não ir a lado algum. E ser o cavaleiro sem espada no meio da floresta recheada de lobos. Tudo o que não pertence ao reino dos sonhos faz parte da dura realidade que é o pesadelo. Quase tudo é duro, pesado, agressivo, mortífero. Quase tudo o que não é felicidade é pesadelo. E o pesadelo é quase toda a vida. É sentir dor, gritar no meio da praia vazia, estar deitado numa maca de hospital, pedir ajuda, virem médicos com garantias de que não se pode matar o paciente. Ter o veneno à frente da boca mas ser controlado pela cobardia. Fechar os olhos deitado num prado e entrar num outro planeta: «Nasceste rico, vais para a escola dos meninos bonitos, tens namoradas, mil namoradas, dás mil beijinhos. Terás a melhor das adolescências. Quando chegares a adulto, os bolsos das tuas calças estarão sempre cheios de notas de mil e de cinco mil e de um milhão. Envelhecerás com calma, terás filhos – crianças lindas - , os teus pais morrerão, claro que sim. Os pais morrem sempre. Mas os teus morrerão felizes por te verem feliz. Tu próprio morrerás, mas será tudo lá para a frente, para o infinito. Agora, és uma espécie de arco-íris.» Acordar, sair da cama, tomar o ansiolítico, trabalhar, levar com o cajado nas costas, ser tudo mas mesmo tudo mentira.