A Chave

A CHAVE

Como a coisa toda havia começado? Ela não sabia nem como e nem o porquê. Estava envolvida demais na coisa pra se dar conta de que tudo não passava de um ardil.

As chaves do carro haviam caído dentro da mata, ou na cachoeira, ou sabe-se lá onde, o fato é que não estavam mais em suas mãos, mas estavam antes, disso ela tinha certeza.

Ainda não tinha notado os olhares que lhe lançavam, taxativos e acusadores. Sorria enquanto a tarde ia caindo na mais completa escuridão, procurando a tal chave por entre os arbustos da mata semi-cerrada, até por caminhos que com certeza absoluta não tinha andado. Sorria e fazia piadas a respeito da situação, procurando, procurando. Os outros também procuravam enquanto faziam piadinhas mordazes a respeito de sua inteligência, não porque quisessem ajudar, mas é que a tal cachoeira ficava a trinta quilômetros de casa, e ninguém iria embora sem encontrar a chave do carro.

Alguém acendeu o isqueiro para iluminar o caminho. Qualquer esperança de voltar pra casa se extinguiu com os últimos resquícios de luz que ainda não tinham morrido na noite densa e escura que engolia o céu numa rapidez surpreendente. Era melhor ir para perto do carro e começar a pensar em arrombar a porta e imaginar como é que se fazia uma ligação direta depois que o alarme disparasse.

Ela já não sorria e nem se utilizava mais da velha tática de se alto satirizar para aliviar a tensão que havia criado por ter perdido a (e porque não dizer?) maldita chave do carro. Agora, andando pelo caminho estreito ladeado por folhagens que não conseguia distinguir, começava a imaginar a situação que criara para si e para todos que estavam com ela ali, os outros quatro. Já começava a sentir um nó apertado na garganta, e estava pronta pra pedir desculpas a todos e começava a suspeitar que não só a chave estava perdida como todos ali também, mas antes que pudesse começar a gaguejar qualquer coisa, avistou o brilho inconfundível, lá no fim da estradinha, da lataria do carro. Um brilho que todos que possuem carros esperam ver quando retornam de algum lugar e os deixam estacionados em lugares pouco confiáveis, um brilho que alivia o coração e enche o rosto com um sorriso bobo e confiante.

No lampejo daquele brilho, como se ela tivesse visto nele a verdade absoluta, o vislumbre do que se escondia dentro de sua mente, se lembrou de que deixara a chave na ignição. Um misto de vergonha e culpa se espalhou em feias manchas vermelhas em seu rosto.

- Pessoal, acho melhor a gente procurar mais por ali atrás... agora tenho quase certeza de que ela caiu por ali – disse, mirabolando um plano para escapar do extremo ridículo no qual se metera.

- Acho que já chega, você não? – uma voz raivosa já tremia no frio que o vento começara a soprar, trazendo pra perto deles uma chuvinha fina e gelada.

- Por favor! É só por cinco minutos! É bem ali atrás, acho que uns dez metros pra trás. Acho que foi na hora em que eu estava correndo, lembra? E você esbarrou em mim... pode ter caído lá.

- Agora a culpa é minha? Não lembro de ter esbarrado em você...

- Caramba olha só que sorte, velas! – ela apontou para uma das margens da estradinha e todos puderam ver em meio a penumbra, um despacho iluminado pelo isqueiro que lançava uma chama prestes a se apagar. Se abaixou antes que alguém horrorizado pudesse dizer alguma coisa, pegou uma delas e acendeu o pavio – pega aqui logo e procura ali, rápido que eu preciso fazer xixi! – foi empurrando o pessoal para o lado oposto ao carro em meio a protestos.

Quando todos tornaram a procurar, agachados e entretidos com a busca, ela sorrateiramente disse que continuassem porque ela estava apertada demais e ia procura um lugar adequado. Se esgueirou para fora do grupo e foi silenciosamente em direção ao carro. Logo a escuridão a envolveu de um jeito tão completo que ela já não podia ver mais o grupo que, completamente iludido, continuava a busca.

Novamente a gratidão invadiu seu peito quando avistou o carro. Seu coração pulava desajeitado no peito enquanto ela avançava a passos descontrolados em direção a concretização daquilo que no momento parecia ser a coisa mais importante de sua vida: não cair no ridículo com seus amigos.

Não queria começar a julgar seus atos já ali naquele momento, queria chegar logo em casa, tomar um banho quente e só então dar boas gargalhadas.

Chegou até a cerca onde havia uma passagem e logo estava à porta do carro. Abriu a portam sentindo o bafo quente que vinha lá de dentro. Apanhou a chave na ignição. Não podia ligar o alarme porque o plim plim iria denunciá-la, apenas girou a chave na fechadura e todas as portas foram travadas automaticamente.

O caminho de volta ao grupo foi incrivelmente rápido, ela estava satisfeita consigo mesma.

- Olha só o que eu achei! – disse sorridente, balançando a chave entre os dedos – Agachei ali pra fazer xixi e quando acabei lá estava ela bem do meu lado!

O caminho de volta foi divertido. A raiva dos outros já se transformara em alivio e alegria. Aquele final de tarde certamente seria memoravelmente lembrado como cheio de aventura, burrice, sorte e graça e não como um quase linchamento, que provavelmente era o que teria acontecido se a verdade fosse algum dia descoberta.

Sônia Machado
Enviado por Sônia Machado em 05/10/2008
Código do texto: T1213161
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