A LUTA

Ferreira acordava todos os dias antes do sol. Tinha dois ônibus para pegar e mais uns dois quilômetros de caminhada até trocar de roupa e iniciar sua jornada de carregar o caminhão do Depósito de Material de Construção, no qual trabalhava. Bastante pacato, só saia do sério se alguém tivesse a ousadia de falar mal da Gloriosa. Para quem não sabe, a Gloriosa é o apelido da Portuguesa de Desportos, time da Capital paulista. Poucos são os que confessam serem torcedores daquela inconstante agremiação e Ferreira não era de se esconder, mas também não fazia alarde. Falar mal da Gloriosa, no entanto, era o mesmo que ofender um familiar. Podiam até tirar um sarro e contar piadas, mas nunca falar mal. Aliás, Ferreira trabalhava naquele depósito de materiais por ele ser perto do Estádio do Canindé, sede da Portuguesa, o que lhe permitia colecionar os autógrafos dos seus ídolos.

Um dia, por conta de uma greve de ônibus, Ferreira não teve como chegar em casa. Já havia passado por situação semelhante e logo telefonou para o Bar do Mané, perto da sua casa, e mandou avisar a mulher. Pensou em dormir junto aos sacos de cimento ou mesmo fazer uma cama de jornal num dos montes de areia fina. Podia ser até que preferisse uma das pilhas de Madeirit, mas o capataz proibiu seu pernoite. Sem ter para onde ir e como não era dado a farras e prostíbulos, foi caminhar a esmo. Não demorou muito e estava junto aos portões do Canindé.

Notou uma grande aglomeração de pessoas, algumas exaltadas na fila do ingresso e outras mais tranqüilas a cercar um vendedor de cachorro quente. Imediatamente pensou em adquirir um ingresso e após o jogo deixar-se ficar. Teria abrigo, banheiro e na manhã seguinte pensaria em como sair dali. Nem se preocupou em saber se era jogo e quem estaria no gramado. Pensava apenas na segurança de uma noite bem dormida aliada ao conforto de um banheiro.

Adquirido o ingresso, logo deu-se conta de que não estava entrando pelo lado que dá para as arquibancadas do estádio e sim, seguindo a multidão, era do Ginásio que estava se aproximando. Curioso, mas nem tanto, esperou até se instalar no Ginásio coberto para depois se inteirar do evento. Antes de mais nada, imaginou-se com sorte pois haveria de dormir abrigado.

Para a sua surpresa ouviu de dois sujeitos ao seu lado um efusivo comentário sobre outro de seus prazeres. A luta principal desta noite seria a do Maguila. Nem sabia que tinha comprado ingresso para uma lute de boxe, muito menos de que a mesma seria a do Maguila. Na sua opinião, Maguila era o maior, o melhor e, antes de mais nada, o mais bem humorado e humilde lutador de boxe do Brasil. “Adilson Maguila, meu Deus!”

Apesar de seu entusiasmo e alegria, a preocupação maior do Ferreira era conseguir ficar no Ginásio após a luta e depois encontrar um local adequado ao seu sono. Acabou não prestando muita atenção aos “assaltos” da luta e apenas olhava em volta, estudando o terreno e a localização dos seguranças e dos possíveis locais para se esconder. Era vital que encontrasse logo um, pois assim já iria se acercar e garantir que seu plano corresse bem. Depois de alguns minutos notou uma porta que pensou ser de algum depósito no qual poderia se amoitar. Talvez até encontrasse alguns colchões daqueles de treino de judô ou coisa parecida. Ferreira possuía uma cultura na amplidão das transmissões esportivas dominicais da Globo, portanto sabia que isso era possível.

Levantou-se e calmamente, como quem não quer nada, foi em direção à porta. Na primeira tentativa, sem nenhum problema, a porta se abriu e Ferreira entrou fazendo o sinal da cruz. Acontecesse o que tivesse de acontecer. Na pior das hipóteses dormiria na delegacia do bairro, mas nunca na rua ou debaixo de uma ponte. Esperou sua vista acostumar com a escuridão e percebeu que se tratava de um corredor e não de um depósito. Foi caminhando ao longo da parede até que passou por outra porta. Esta estava trancada. A próxima não e ele entrou para ver aonde dava. Gostou do que viu. Era uma sala com os tais colchões empilhados e um vestiário pequeno ao lado. Tratou de usar o banheiro, antes de mais nada. Depois se espreguiçou numa das pilhas de colchões e sem perceber caiu no sono.

Acordou assustado quando alguém entrou lá e acendeu a luz. Foi flagrado dormindo e sem desculpa nenhuma para dar. Não se sabe de onde, apareceram dois seguranças que logo o tinham pelos braços. Nada mais humilhante do que ser confundido com ladrão. Ao saírem todos para o corredor, Ferreira cabisbaixo e os seguranças lhe apertando cada vez mais os braços, além do encarregado que o descobrira, que ia na frente bradando a todos a sua heróica atuação, deram de cara com o Maguila, seu treinador, mais o empresário e um pequeno grupo de fãs. Agora ou nunca, pensou ferreira, se desvencilhando de supetão dos braços que o prendiam e desatou a correr na direção do astro.

Enquanto um ligeiro tumulto se formava, Ferreira se atirou aos pés de Maguila e pediu ajuda. O pugilista, que apesar de não aparentar, era pessoa pacata, logo intercedeu a favor daquele personagem simplório e, até certo ponto surreal, que se atirava aos seus pés. Dadas as explicações e desfeito o mal entendido, Ferreira ganhou um jantar numa daquelas churrascarias da Marginal do Tietê e posteriormente uma carona.

Maguila, cujo destino era Itaquaquecetuba, município da Grande São Paulo, ofereceu-se em deixar seu mais novo fã perto da onde morava, pois passaria pela Zona Leste antes de pegar a rodovia. Ferreira teve até foto sua tirada, tanto só como ao lado do ídolo e promessa de receber uma cópia pelo correio, que jamais foi cumprida. Já dentro do carro e a caminho de casa, Ferreira pôde conversar mais tranquilamente com Adilson Maguila que entre outras coisas, daquelas que ídolo sem assunto pergunta para fã, ficou sabendo que Ferreira carregava caminhão em depósito. Ora, qual não foi a surpresa do Ferreira quando ouviu do Adilson que o que ele mais gostava de fazer, o que ele realmente queria ser na vida era pedreiro.

A aventura terminou lá pelas duas horas da madrugada e o Ferreira fez a sua caminhada até chegar a casa. Driblou um assalto, dois bêbados, mas o cachorro da vizinha não. Chegou em casa, com a calça rasgada e o cheiro da farta cervejada a que teve acesso na churrascaria. A mais óbvia situação se formou assim que entrou pela porta. Sua mulher logo acordou de seu sono leve e veio tirar satisfação. Não tinha visto nada na televisão que justificasse a alegada greve de ônibus. O que via, realmente, era um marido que havia bebido, estava com a calça rasgada e insistia na mais estapafúrdia das estórias. Janaína até aceitaria alguns trechos da imaginação do Ferreira, mas a de que o Adilson Maguila lhe tivesse confessado o desejo de ser pedreiro... Esta era demais. Ferreira além de levar umas vassouradas por conta das mulheres que nunca teve nos braços, dormiu o que lhe restava da madrugada no sofá.

Passados os anos, Janaína ficou viúva e foi morar com uma das filhas e numa certa tarde modorrenta assistiu, ao lado de um dos netos, uma entrevista do então Secretário de Esportes de Itaquaquecetuba. Ninguém menos que o Sr Adilson “Maguila” Rodrigues que confessou ao repórter aquilo que ela já sabia. Não deu tempo nem de chamar ajuda. Janaína enfartou ali mesmo, na frente do neto e suas últimas palavras geraram a manchete do semanário da comunidade: “Avó moribunda confessa: queria ser pedreiro!”

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 05/10/2008
Código do texto: T1212865
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