AVISO À RESIGNAÇÃO

1

- Josuel tenha cuidado com esse seu colega...

Ele se volta à porta que dá para o terracinho, o jardim, o portão e a rua defronte, estreita, inclinada:

- Por que Nair você não gosta dele? Que mal ele lhe fez?

A mulher sorri, disfarçando-se, contudo, responde:

- Não sei. Não me agrado dele. Tenho sempre um pressentimento ruim quando ele aparece.

- Besteira criatura. Tchau!

- Vai com deus, Josuel.

O homem deixa a sala e cruzando o terracinho, o jardim, abre o portão e desce a rua, em passos rápidos.

Nair, já no terracinho, segue-o com os olhos aflitos. Que Deus o proteja! Sempre que ele sai para se encontrar com o Tonho, sente um receio, como um aviso...

- Bom... Deixe-me ir cuidar da vida!

Retrocede ao interior da residência, indo cuidar dos afazeres domésticos.

De uma residência circunvizinha chega-lhe o som da música antiga:

"Encosta a tua cabecinha

No meu ombro e chora"

Saber que essa música fez sucesso no passado! Tantos anos decorridos, como se ela não tivesse sido adolescente, naquela didadezinha do interior. Não tivesse escutado a letra romântica, que lhe tocava o coração...

- Passou, passou.

A realidade hoje é outra. Os tempos mudaram. É como se lhe fosse tudo uma ilusão.

- Uma mentira.

Acende o fogão e põe a vasilha com a água para ferver, já reentregada a função doméstica.

"E conta tuas mágoas

Para mim..."

A voz do cantor, no ritmo bom. Muito bom...

2

Tonho sorrindo:

- Relacha cara. Temos de curtir também. Só trabalho, trabalho! Seu Marinho explora muito a gente na gráfica.

Bebem. As mesas estão cheias. O ambiente é dominado pelas vozes, risadas, tilintar de pratos, talheres, arrastar de mesas. A noite avança ao encontro da madrugada. Fora, o mar sussurra, morrendo na praia deserta. Automóveis estacionam defronte do restaurante.

- Falam numa "lei seca" que irá proibir do cara beber e dirigir. Dizem também que a multa será pesada. Bebeu não pode dirigir.

Josuel de repente se lembra da esposa, na prevenção que ela sente por o colega e, num gesto de cabeça aquiesce. E o outrro:

- Vamos pedir outra cerveja?

- Pede.

Na mesa recuada a mulher morena segue, com disfarçe, os dois homens bebendo e, retirando o celular da bolsa, faz a ligação:

- Valdir, o safado do Tonho tá aqui, bebendo.

Então, no outro lado da linha, a voz indaga:

- Onde fica esse lugar que você está galega? Me dá o endereço.

Recebendo-o, anota-o e para o sujeito agigantado na mesa vizinha:

- Negrão temos um "ajuste" a fazer.

O sujeito encara-o esperando. E Valdir:

- O escroto do Tonho não cumpriu com a palavra, não pagou a "muamba". Eu lhe dei outra chance pra quitar e... nada! Agora a conversa será diferente!

- Certo. Vamos lá.

Aí põem os capacetes, sobem nas motos e partem em disparada, para cumprir a lei do "tráfico"...

Velozes as motos cortam a avenida praticamente deserta pelas horas avançadas da noite, acolhedora da maldade humana.

3

Despertando de repente, Nair sentada à beira da cama, sente. Entendendo. De olhos duros busca a resposta pelo que intimamente sente, no vidro do basculante do quarto, que apenas reflete a luminosidade vinda do poste da calçada defronte.

- Aconteceu "algo" com o Josuel!

Exclama, dando voz à angústia e... Resignada, realista, espera.

Então ouve o portão se abrir e os passos cautelosos cruzar o jardim, chegando. Para anunciar?

Com o coração aos pelos pela aflição aguarda.

- D. Nair? Abra aqui, por favor.

- Espere um minutinho, já tou indo. Tou indo.

* * *

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 04/10/2008
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