"Alma-fumaça" ou "O botão vermelho"
De quem ela tinha herdado tanta esperteza, ninguém sabia dizer. A mãe era despreocupada com o intelecto, não gostava de livros, nem de música, nem de teatro e cabulou tantas aulas na escola, que não conseguiu completar o primeiro grau. E engana-se quem acha que ela se arrepende. Não, não. A vida mostrou-se até gentil demais ao oferecer aquele emprego no comércio. Os colegas de trabalho viviam pra reclamar de tudo, mas ela não queria nada além.
O pai nasceu fadado à pobreza, como se pertencesse à mais baixa casta indiana. Precisou trabalhar desde cedo, o que não significa que o indivíduo torna-se menos inteligente por isso, mas o negócio dele era mesmo gastar horas jogando vinte-e-um e caixeta. Qualquer dinheiro que ganhasse, era para isso que utilizava.
Sendo filha de duas pessoas tão rudes e incompatíveis, Lênia viu-se morando somente com a mãe num quarto germinado. Do outro lado da parede residia um pianista tímido e sem amigos que, quando tocava, provocava na garotinha um estranho transe. Ela colava o ouvido à parede para ouvir melhor. Enfurecia a mãe ver que a filha tinha dormido sentada, com a mãozinha gorda ainda em concha no ouvido.
Era raro que o pai viesse visitar. Ele não tinha interesse no crescimento da menina e devia muitos meses de pensão. Ficava irritadíssimo ao pensar que Lênia tinha apenas dois anos, e que os dezesseis restantes estavam tão distantes, que era preferível jogar para ajudar o tempo passar. Não que alguma parte desse dinheiro fosse pra ela. De jeito nenhum.
Era um primor a garotinha! Mostrava-se interessada pelo piano, sabia todas as letras do alfabeto, cantava músicas de cor e conseguia juntar pecinhas de quebra-cabeças pequenos em tempo surpreendente. Na creche preferia os jogos desenvolvidos para outra faixa etária e, quando ouvia um coleguinha fazendo manha, lançava um olhar duro, como se dissesse "deixe de ser infantil, meu camarada!". Muitas vezes, ouvia as reclamações da mãe como uma mocinha.
--- Lênia, hoje um cliente reclamou de mim pro gerente. Cê acredita? Dei o meu melhor atendimento, mas ele queria um puta desconto. Cê acha que eu dei? Comigo não é assim, não. A gente tem fibra forte nessa família, viu, filha?
Ela corria até a mãe e dava-lhe um beijo no joelho, em sinal de solidariedade.
A situação estava ficando cada vez mais apertada no barraquinho. Judite não tinha idéia do que podia fazer, e também não gostava de pensar em coisa que exigisse muita lógica. Numa dessas horas de sofreguidão infrutífera, uma colega veio contar sobre o concurso lançado pela loja onde trabalhava. "Bebê-bum" tinha como intuito escolher o bebê mais esperto para ser garoto(a)-propaganda. Não tinha nem que ser uma gracinha.
Judite sentiu nascer uma nova esperança e bendizia em pensamento o dia em que Lênia nasceu. Era sua garantia de um bom negócio, já que o concurso pagava dez mil em dinheiro vivo e brilhante, além do aqui-e-ali quando havia alguma foto de produtos novos.
A tarefa era simples: os bebês tinham que apertar botões de cores diferentes, gritadas pelo apresentador, que iam aumentando em número, seqüência e velocidade, até que sobrasse apenas o bebê mais rápido. Ia ser mais fácil do que ter concebido Lênia!
Todos os dias depois de chegar do trabalho, Judite treinava a garotinha para o concurso. Pegou um plástico de bolinhas de ar na loja onde trabalhava, pintou muitas bolinhas de todas as cores possíveis disponíveis em guache (teve até a brilhante idéia de misturar algumas delas para ver o que dava) e ditava as cores para Lênia estourar com o dedo indicador bem nutrido. Embalada pelo som do piano, Lênia tornava-se a maior conhecedora de cores de sua idade e não se cansava facilmente do desafio; podia seguir mais de duas horas naquela brincadeira.
Depois de um mês de treinos diários, o dia havia chegado e seria televisionado em rede nacional. Adultos carentes adoram crianças fofas, tanto quanto donos de emissoras adoram ibope.
Como era de se esperar, o desafio não era sequer um desafio para Lênia. Os bebês foram cessando com o passar dos minutos e, ao término de uma hora, o prêmio estava na bolsa surrada de Judite, que sorria leitosamente para as câmeras, e mal podia esperar para estar em casa, contando nota por nota.
Ia sorrindo para a filha dormindo no elevador, quando este parou num andar qualquer do prédio da TV. Tinha gostado de estar a sós com a filha, mas tudo bem. Podia dividir um elevador. Bem, não com a pessoa que apareceu. O marido sorria, bêbado, alegando saber o que tinha acontecido e querendo metade do prêmio, "já que a cria também é minha".
Lênia acordou com a discussão e com o elevador parado. Observava os pais quase em agressão, quando o homem tirou de dentro da jaqueta um canivete reluzente e bem afiado. A menina simplesmente analisava.
Durval queria fazer tudo parecer um acidente. Posicionou a cabeça de Judite no vão da porta e começou a berrar para o bebê:
--- Aperte o botão vermelho. Agora!
A menina não se mexia.
--- Vamos, menina! Que coisa! Não foi isso que você acabou de fazer? Apertar um monte de botões idiotas? Aperte o vermelho!
Não se pode dizer que ela tenha permanecido parada por causa do sofrimento da mãe. Ah, não. Ela olhava diretamente nos olhos do pai, numa atitude de reflexão e de desaprovação do que via. Esse olhar durou apenas uns minutos, o suficiente para mostrar que a alma de Lênia era de um outro estágio. Depois, ela olhava o homem com jeito de bebê cansado, desesperado por leite morno.
Durval lentamente soltou Judite e colocou a própria cabeça onde antes estava a da mulher. Queria saber se era uma questão de afetos.
--- Judite, peça pra ela apertar o vermelho.
--- Deixe de ser doido!
--- Manda!
--- Lê, aperta o botão vermelho, querida.
Ela continuava observando o pai, agora produzinho um estranho barulho com a chupeta, como se quisesse que o bico virasse leite. O homem retrocedeu três passos, até ficar fora do elevador. Com lágrimas nos olhos e um sentimento de vergonha e culpa que o esmagavam mais do que se o próprio elevador tivesse pesado sobre seu corpo, disse numa voz afogada:
--- Lênia, aperte o botão vermelho.
E a menina obedeceu prontamente.
Durval foi pra casa pensando: "por que as almas apodrecem com o passar dos anos?"
*****************