Volta e meia nas últimas semanas Dona Fátima, a inquieta e falante faxineira do senhor Waldemar, insistia para ele dar um jeito em umas ‘caixas velhas e fedidas’ – era assim mesmo que ela falava, torcendo o nariz – guardadas sabe-se lá desde quando em cima do armário do pequeno escritório.  Dona Fátima também não entendia porque um homem já aposentado mantinha um escritório em casa. Mas quanto a esta última observação o senhor Waldemar ignorava-a, solenemente, considerando-a, no fundo, uma tentativa de intromissão em sua vida.

 

Mas a tal caixa – era apenas uma só, mas de bom tamanho – acabou por se tornar um ponto no qual convergiram a opinião e o bom senso de patrão e empregada. Então, em uma sexta-feira chuvosa e nublada, dia em que a espevitada Dona Fátima comparecia para a limpeza de final de semana, o senhor Waldemar, sem dizer nada, subiu em um banquinho e tirou de lá de cima, silenciosamente, a caixa de papelão onde se lia em sua parte superior, escrito com tinta piloto: Documentos pessoais.

 

‘Até que enfim, seu Waldemar. Vai se livrar dessa velharia... ’ – comemorou Dona Fátima, perigosamente armada com um espanador.

 

Sentindo-se um tanto intimidado, o senhor Waldemar carregou a caixa até o quarto e sentando-se em sua poltrona, abriu-a, percebendo que não mais se recordava do seu conteúdo. Aberta a caixa, apareceram, de logo, uma flâmula do Palmeiras – seu time de coração, embora o futebol, nos últimos anos, reduzira-se para ele em um ou outro jogo pela televisão –, um calendário da Secretária da Fazenda de 1995, ano em que se aposentara – inda lembrava-se desse calendário sobre a sua mesa – e um velho par de óculos, de aro de tartaruga, faltando a perna direita e com a lente esquerda trincada. O senhor Waldemar chegou a se irritar ao encontrar aqueles objetos; caso os mostrasse a Dona Fátima ou mesmo se ela os visse, certamente iria se sentir a própria ao ter chamado aquilo tudo de ‘velharia’. O senhor Waldemar deu de ombros. Ele não era a primeira nem a última pessoa a ter em casa um receptáculo de coisas velhas, esquecidas e inúteis. Não iria se sentir culpado nem ridículo por causa disso. Além do mais, a ótica das diaristas, faxineiras e empregados domésticos em geral era sempre a de se descartarem do maior número possível de coisas guardadas em uma casa. Lógica do menor esforço. O que não deixava de ser certo.

 

Resolvido a livrar-se daqueles guardados, o senhor Waldemar – não sem antes separar a flâmula do Palmeiras – ia fechando a caixa, quando percebeu, enfiada entre alguns papéis e espremida contra um dos lados da caixa, uma agenda com capa de couro preto que, imediatamente, despertou-lhe um verdadeiro vendaval de lembranças. Logo aquela agenda! A princípio, julgara tê-la perdido há muito tempo. Agora, reencontrando-a, aquela capa negra e os caracteres desbotados do ano de sua impressão – 1985 – deram-lhe uma sensação de vertigem, como se aquelas décadas estivessem a rodopiar á volta dele, arrastando-o a um redemoinho perigoso, mas, ao mesmo tempo, irresistível.

 

O senhor Waldemar pôs a caixa no chão, tirando a agenda de dentro dela. Começou a folheá-la com cuidado, temendo que das suas páginas amareladas algo inesperado saltasse e o atingisse em cheio. Sempre fora cuidadoso em tudo; não convinha agora abandonar esta postura prudente. Ajeitou os óculos na ponta do nariz e começou a leitura (ou seria um mergulho no tal redemoinho?).

 

Logo na primeira letra – A, de amigo, de amor, belíssima letra, a emprestar seu sibilar fonético a tão belas coisas! – encontrou o nome de Armando Passos, um antigo gerente do Banco do Brasil, que, cerca de uns vinte anos passados, pregoara-lhe as grandes vantagens de fazer um seguro de automóveis. O senhor Waldemar – não sem experimentar meia dúzia de olhares desconfiados do zeloso bancário – explicasse que aquele produto, em particular, não o interessava, tendo em vista não saber dirigir, o que, conseqüentemente, fez que jamais adquirisse um carro na vida. Armando morrera a alguns anos, em um acidente de carro. O senhor Waldemar cogitou se, ao menos, ele havia feito o tal seguro.

 

Na letra D – esta uma letra a merecer certa reserva, preâmbulo de palavras, no mínimo, desagradáveis, dor, doença – reencontrou David Costa e ao seu lado anotados os números de dois telefones e um endereço. David foi seu dentista durante anos. Gostava dele, um homem rubicundo e bonachão, competente em seu ofício apesar do sempre irritante zumbido do motor, a fazer fundo musical para suas piadas e ligeiras indiscrições. Graças a David, tivera coragem suficiente para completar três tratamentos de canal e um implante dentário, que lhe permitiu chegar á velhice sem os desconfortos de uma dentadura. Quando o país atravessou uma séria crise econômica – o senhor Waldemar não saberia dizer se a centésima ou centésima primeira – David decidiu virar a mesa. Vendeu tudo o que tinha, fechou seu consultório e mudou-se para Portugal. Anos depois – a lembrança lhe fez sentir-se importante – recebeu dele um cartão postal; estava vivendo em Lisboa, tinha um consultório muito bem freqüentado e havia se casado pela segunda vez com uma portuguesa. Dizia que estava feliz e que a esposa fazia um bacalhau a Gomes de Sá irresistível.

 

Da porta do quarto, dona Fátima olhava para ele. Estava parada no meio do corredor, apoiada na vassoura, um ar de seriedade constrangedor. Ele retribuiu-lhe o olhar, praticamente convidando-a a ir procurar o que fazer. E ela foi, arrastando preguiçosamente a vassoura, balançando a cabeça coberta com um lenço cor de rosa, em um claro gesto de censura. O senhor Waldemar voltou para a agenda, àquele mundo de anotações e rabiscos, de símbolos e lembranças igualmente descorados pelo tempo. Uma sucessão imensa de nomes, números, endereços, pequenos lembretes, sucederam-se diante de seus olhos, quase todos perdidos para sempre, como, por exemplo, um tal de Italcir – lá na letra I, outra letra difícil, designativa de problemas, porque monograma dos idiotas e imbecis – um sujeito – ao menos, ele suspeitava que fosse homem – de quem hoje ele não fazia a menor idéia de quem se tratava.

 

Estava se convencendo do acerto das queixas da zelosa e insistente dona Fátima quando, cruzando pelas aléias da letra M – letra multifacetada, multidimensional, enunciativa de tantas Marias, mas anunciadora primeira da indesejável Morte – deparou-se com o nome escrito em caneta vermelha: Marilsa. Ah! Ali sim, cabia parar aquele périplo pelos recessos do ontem e respirar fundo. Marilza! Elegante, esbelta, os cabelos de uma cor de mel, delicados, finos, sedosos, olhos grandes, boca sempre imensa em um sorriso que parecia rasgar-lhe o rosto magro e anguloso. E as mãos, delicadas, de dedos finos como gravetos, mas macios como bolotas de algodão. O toque de suas mãos lhe pareceu, subitamente, redivivo e os dedos artríticos do senhor Waldemar moveram-se, deselegantes, buscando um novo contato impossível. Impossível agora, ali, naquele quarto sem graça, naquele tempo sem brilho. Porque antes por muitas vezes os tivera entre as suas mãos Enquanto andavam juntos para uma sessão de cinema vespertina ou para um chá no início da noite. E estas pequenas aventuras a dois se repetiram tantas vezes, ao longo de um distante outono, que o senhor Waldemar, em certo momento, sentiu-se ameaçado. Existem certos limites para as ações de um homem com relação a uma mulher, principalmente quando ambos são solteiros. A sucessão irresponsável de matinês, casas de chá, visita a exposições, incursões pelos museus da cidade – Marilza, ele lembrou, era artista plástica, ou, como ela dizia, faço aqui e ali minhas aquarelas – não podiam continuar sem conduzir a um impasse que, por sua vez, conduzia a uma conversa séria. Uma definitiva colocação de opções sobre o estrado onde ambos dançavam, lentamente, aquela dança de acasalamento. Marilza pediu uma definição. Gostava dele, afirmou, os dedos finos, suaves, estreitos, enrodilhando como pequenas serpentes a taça de vinho tinto. Já não eram crianças – e não eram mesmo, tinham mais de quarenta – e a vida corria célere – o que para ele sempre pareceu uma desculpa para se manifestar algum tipo de desagrado – e certos pontos precisavam ser definidos. Sendo assim – e seus olhos lânguidos lamberam-lhe o rosto afogueado, com doçura – o que ele decidia?

 

Ele não decidiu nada. Engoliu o vinho tinto, que lhe pareceu cortante e amargo. Sentiu naquele exato instante apagaram-se, melancólicas, as luzes das tantas matinês, amargarem-se os sabores dos jantares a dois. Nem se lembrava mais do que respondeu a ela naquela noite. Mas lembrava ainda do paulatino desencanto que foi se instalando em seus olhos amendoados, do ligeiro tremor que se instilou em suas mãos delicadas, do lamento que toldou a sua voz tão clara e cristalina.

 

Ao lado do seu nome, o número do telefone. Que fazer? Deveria - isto sim-, nem ter aberto aquela maldita caixa! Se fosse mais humilde e menos dado a teimosias caprichosas, de muito já poderia ter se livrado daquele baú de constrangimento. Mas o número estava lá, grafado em vermelho, como o vinho tinto naquele último brinde a dois. Já que a picada maligna da curiosidade o cutucava sem perdão, melhor satisfazê-la. O médico lhe dissera, em sua última consulta que ele precisava dormir melhor. Se não atendesse àquela imperativa mordida, certamente noites e noites de insônia o aguardavam.

 

Pegou o telefone e discou o número vermelho tinto. Um toque, outro mais. Estúpido! – pensou, acrescentando  mais um impropério á letra E, ao lado de Egoísta e Energúmeno – depois de tantos anos, o número deve ter mudado. Desliga! Desliga! No quinto toque, atenderam.

 

‘Sim?’ – era uma voz de moça, jovem, muito jovem, não podia ser Marilza. Mudou. O telefone mudou. Ainda assim perguntou, tateando:

 

‘Gostaria de falar com dona Marilza.’

 

‘Quem deseja?’ – a voz da mocinha pareceu mais íntima, menos distante.

 

‘Um velho amigo. Meu nome é Waldemar!’ – e milagrosamente não se sentiu mal ao dizer estas palavras. Era mesmo um velho – literalmente falando – amigo e o nome dele era de fato Waldemar.

 

‘Mamãe não está. Está viajando com papai. Foram à Europa. O senhor quer deixar recado? Eles voltam semana que vem!’.

 

Mamãe? Viajando? Com papai? Europa? Ah! Quanta revolução em pouco mais de meia dúzia de palavras. Quantas voltas e voltas do ponteiro do relógio, marcando, implacável, um tempo desconhecido e invisível! Quantas taças de vinho! Quantos museus! Lá, na Europa.

‘Não, obrigado. Tenha um bom dia’. – e desligou, sentindo velha caixa sobre suas pernas pesar uma tonelada.

 

Fechou a agenda e recolocou-a lá dentro. Deixou de perscrutar as letras N, O, P e assim até o fim do alfabeto conhecido. Saiu do quarto e depositou a caixa sobre a mesa da sala. Dona Fátima, agitada por saber afinal qual seria sua deliberação sobre o destino a dar àquele traste, abandonou vassoura e tudo e postou-se, atenta, na porta da cozinha. O senhor Waldemar sentiu-se invadido pelo seu olhar de espera, pela sua cobrança silenciosa. Irritado, bateu com a mão sobre o tampo da caixa e com o melhor tom de patrão autoritário que pôde encontrar, disse, encerrando o assunto:

 

‘Bota a caixa no mesmo lugar. Depois eu vejo o que faço com ela. ’.

 

Voltou para seu quarto, passou a chave três vezes na porta e arriou-se na cadeira. 

             Naquele dia ele não saiu de casa.