Judite

Judite é pobre, negro e homossexual. Concentra em si uma série de preconceitos. Desse jeito, fica impossível arrumar um emprego decente, se alimentar, pagar um aluguel, enfim, ter dignidade. Neste país, ser negro implica quase que necessariamente ser e ficar pobre.

Judite não agüentou por muito tempo toda essa droga de vida. Chega de gente filho-da-puta e cínica em sua vida. Logo após a última pilantragem de seu caso, resolveu sair do barraco onde morava. O desgraçado que morava com ela tomava todo o seu dinheiro e ainda lhe dava umas porradas. Cafetãozinho barato de merda, dos piores possíveis; tipinho ordinário, mesmo.

"Pô, fazê ponto noite inteira, agüentá viagem de 'jack' noite toda, e ele nem aí, só qué dinheiro pra ficar doidão. Vá pu inferno! Amô tem limite. O meu acabô". Dizia sempre a mesma coisa após uma surra, quando corria pra casa da Maria, sua amiga de longa data, cheia de sangue e com as roupas só as tiras.

Mas naquela sexta, ela cumpriu a promessa. Saiu e nunca mais deu notícias. O cara ainda procurou por ela. Talvez por que ficou sem dinheiro e não tinha mais ninguém pra bancar o vício dele. Com certeza, saudade não foi a razão.

Judite andava vasculhando as lixeiras com um saco nas costas. Pirou de vez. Também, quem consegue sofrer tanto e ainda se manter sóbrio? É muita fome, privações várias e de mão cheia. As dela, vazias.

Seu verdadeiro nome não é Judite e ninguém sabia o qual de fato era. Faz diferença? Há tempos andava com a amiga Joana-Sem-Calça. Mulher companheira, guerreira, pau pra toda obra. Com ela, conheceu de fato o que era solidariedade. Dividiam qualquer coisa, desde a marmita mais fria até o pão dormido, pois viviam de caridade, de pratos de comida de restaurantes, roupas doadas, sapatos imprestáveis.

Faz anos que não tem namorado. Feio, com seu rosto cheio de sucos, não se embeleza como antes, nos tempos gloriosos de programa. Assim, é impossível arrumar alguém. Judite não se importava mais. Se for pra se envolver com outro traste, melhor ficar sozinho, pensava.

Uma certeza movia Judite: um dia as desgraças da vida iriam passar, como os ônibus, as pessoas, os cães, quando ela dorme nas praças, embaixo da ponte, na calçada. Por outro lado, não devia nada a ninguém. Seu compromisso era para consigo mesma. Pagava um preço alto pela liberdade. Estava ali por opção pessoal e por outras razões iguais.

Uma cadeia de fatores configurou o que Judite é agora. Como um rio não é somente um rio apenas, mas um conjunto de outros rios que o formam. Que por sua vez irá desembocar no mar, que não é um mar único, mas vários mares vindos de outras partes do mundo.

Cada elemento carrega dolorasamente uma história, que faz parte de uma História maior, girando num campo gravitacional de mazelas, incertezas, relações, alegrias, angústias, amores, desilusões... Judite carregava a sua, girava também como os outros elementos, mas não tinha consciência disso. Apenas girava, sem nenhuma ânsia de vômito.

Fabiano Vale
Enviado por Fabiano Vale em 29/09/2008
Reeditado em 27/01/2010
Código do texto: T1201919
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