Dumbo

Dumbo morreu solitário, magro demais, deitado na sombra duma mangueira silenciosa ao lado de uma queda d’água barulhenta e constante que corria desde o pé da mata até o destino sem fim da boca da lagoa Mundaú.

Fazia aproximadamente doze anos que o havia comprado: ele e seu irmãozinho. Os dois eram dálmatas. Dumbo, o maior, mais forte e de bolas pretas mais acesas no couro branco, mostrava-se desembestado com suas brincadeiras. Gostava do danado, apesar de suas traquinagens, às vezes até inoportunas, gostava mesmo!

Meu filho Abel era seu legítimo dono. Passava meses sem ir à fazenda mas quando lá punha os pés, quem primeiro lhe fornecia afagos era o pequenino cão. Um fiel amigo, espalhafatoso em suas demonstrações de carinho e de amizade. Dumbo era desse jeito. Quando nos púnhamos a passear, ele, encoleirado, claro, chamava a atenção do público. Eram dois animais belíssimos. Bolinha, seu irmão, o mais franzino e menos pintado, morrera misteriosamente anos antes.

Hoje, quando cheguei a outra fazenda, para onde levei Dumbo para nela ter sua segunda morada, fiquei triste. Olhei-o na sombra daquela árvore; tinha os olhos brancacentos, olhar triste de quem haveria de ser visitado pela morte ainda naquela manhã. Chamei-o pelo nome e enxerguei sua cauda balançar timidamente para me cumprimentar. Não levantou mais a cabeça. Seus olhos já haviam perdido os movimentos e o brilho da vida. Continuei a chamá-lo pelo nome e, continuando a fixar o olhar em sua calda, não a vi mais mover-se para qualquer que fosse o lado. Morria meu cão, cultivando a subserviência e o amor ao dono. Dera para mim seu último gesto de amizade com sua cauda, eu o entendi.

Eu me pergunto: por que a morte não se contenta em pairar no vácuo da existência? Nós bem que poderíamos viver até certa idade e dela, não mais evoluir fisicamente. Por que Dumbo, tão alegre que foi o tempo todo em que esteve perto de nós, não entrou nalguma moldura e permaneceu a nos fornecer seu sorriso franco? Deixou-nos a dor de um espetáculo mais do que fúnebre. Minhas lágrimas arderam de infeliz saudade que meus sentimentos compuseram para guardar eternamente a partir daquele instante.

Meu filho não soube ainda. Vou deixar para lhe dizer com a publicação desta crônica. Sei que reproduzirei a dor que tive ao vê-lo morrer, e meu filho chorará a prantina de quem me supera em amor pelos animais.

Todas as vezes que olhar para a sombra daquela mangueira sem boca, verei o retrato de Dumbo a findar-se sem estrada de santidade ter para estar certo da sobrevivência. Pois, dizem todos os metafóricos ou tolos que os animais irracionais morrem para sempre, não têm céu para se hospedar.

Meu Dumbo está com São Francisco de Assis. Nada me ofusca a esperança de vê-lo pastando noutras plagas construídas para os irracionais. Mas ele, acho, possui razão. Sabia quando não o queria por perto, quando eu estava com raiva. Simplesmente respeitava meu olhar, cáustico ou convidativo.

Esta crônica, Dumbo, eu te ofereço como prova do meu amor incondicional. Não te esquecerei jamais. Teus pulos atrevidos no meu colo sujando minhas roupas, teus gestos desembestados, tua fidelidade, tua beleza estética, as horas gratuitas nas quais cuidavas de nossos pertences, nada disso me deixará continuar a ver-te morto na solidão daquela árvore. Vou lembrar-me de ti com alegria, com uma saudade generosa. Vou cuidar em comprar outro cãozinho para herdar teu nome – acrescentarei “segundo” ao primeiro nome – Dumbo 2º. Assim será chamado por mim.

Companheiro Dumbo: estrelas há no céu, mas não as te posso dar. Teus olhos cegos pela morte não as veriam mais. Tua energia sei que está pairando entre o vento e a alma de tudo. Se estiveres me vendo, apenas balança a cauda e eu certamente ficarei alegre e sentirei no coração a voz de tua alegria. Obrigado por todos os momentos bons que nos presenteaste.

Mandei enterrá-lo com as honras da natureza. Pus flores no seu jazigo. Meu Dumbo merecia esse gesto e assim o fiz. Nunca consegui encontrar nos estranhos do meu convívio pessoal alguém tão fiel quanto ele. Quando o motor do carro parava, ele grunia. Sabia que até ele eu iria para acariciá-lo. Ah! meu querido Dumbo, se eu pudesse ter-te-ia clonado antes para, mesmo sabendo que não eras no todo, mas um saindo de ti iludir-me que não havias morrido. Tua companheira de canil, a jovem Lôla que tanto te incomodou com suas brincadeiras, está de luto. Tenho visto em seus olhos a mesma saudade que facilmente se acha nos meus.

É uma pena que não voltes mais para nosso convívio. Há viagens que se faz sem vontade e sem destino certo, acho que foi o teu caso. Minha dor, nada solitária agora, busca tua lembrança. Abel e eu estamos tristes.

-Pai, o Dumbo morreu?

-Quem lhe falou?

-Sua crônica. Hoje pela manhã, abri o jornal e doeu. Chorei frias lágrimas, dado o tempo passado de sua morte. Já comprou o outro?

E eu nada pude dizer, porque falar, para mim, estava travado no pior espetáculo de efetivação de dor em minha voz.